domingo, 14 de dezembro de 2014

Não sei se pego um ônibus ou se compro uma goiaba

-- Você vai mesmo comer esse pastel? -- perguntou Bruno para a menina sentada logo ao seu lado na pastelaria e que estava prestes a dar a primeira mordida num pastel. 

Perguntou mais para puxar assunto com a menina bonita, mas, caso uma troca fosse aceita, tinha uma goiaba na sua bandeja para oferecer em qualquer negócio. Bruno queria mesmo era comer um pastel de camarão, mas ficou nervoso na hora de pedir e pediu uma goiaba. Apesar do amplo salão da pastelaria estar muito silencioso e quase vazio, e apesar de Bruno ter feito a pergunta em alta voz e estando ao lado da pessoa, a dona do pastel não ouviu direito e pediu para ele repetir. 

-- Eu perguntei se você vai comer esse pastel -- disse Bruno agora maravilhado com o som da própria voz falando "pastel". 

Um homem que estava sentado a quatro mesas de distância de Bruno e da garota começou a rir até se engasgar com seu pastel e tossir. 

-- Nossa, você gosta mesmo de goiaba né -- disse a menina para Bruno, com muita seriedade. 

-- Oi? Eu não disse "goiaba" e eu disse"pastel", pastel -- voltou a gritar Bruno, fazendo novamente o homem, apesar das quatro mesas de distância, rir, engasgar e tossir. 

Bruno notou, ficou confuso e, sem saber que tipo de registro de voz usar, passou a sussurrar para a garota. 

-- Eu odeio goiaba, não suporto goiaba, nem sei por que comprei uma goiaba -- disse, amistoso e sorrindo, fazendo rolar, com a mão, a goiaba na bandeja. 

Nesse momento Bruno e a garota olharam-se nos olhos. Depois ele olhou para a bandeja dela, com o pastel intacto, e ela olhou para a bandeja dele, que servia de terreno para as roladas da goiaba. 

-- Pastel de goiaba. Eu comia muito quando era criança. É muito bom, não sei se tem aqui, mas você deveria experimentar -- disse a garota que depois só soltou um risinho pelo nariz. 

Para evitar um silêncio constrangedor, Bruno pensou em novamente fazer a pegunta sobre o pastel da moça, mas quando estava prestes a dizer a primeira palava teve que parar, pois só agora, ao prestar muita atenção na bandeja da menina, percebera que não se tratava de um pastel mas sim de outra goiaba. 

-- Moço, respondendo a sua pergunta, eu não vou comer minha goiaba -- respondeu ela brincando e girando a goiaba. 

Ele deu de ombros e continuou a conversa: 

-- É fascinante quanta coisa de comer dá para fazer com a goiaba.Tem doce de goiaba, tem o pastel de goiaba e a goiaba goiaba que é só a goiaba, como essa sua aí. 

-- Siiim, pastel de goiaba é super minha infância, adoro. 

-- Como se chama? 

-- Pastel de Goiaba mesmo, acho. 

-- Não o pastel de goiaba, você, Como se chama? 

-- Ah sim, Milena. 

A garota sorriu, perdida, tomada por uma profunda e completa falta de assunto. Bruno só conseguiu pensar em uma única pergunta para continuar a conversa:

-- E por que você não quer comer a goiaba? 

-- Distração. Que cabeça a minha. Só quando fui dar a primeira mordida vi que era uma goiaba. Queria ter pedido um pastel de camarão.  

-- Não seja por isso, Milena, pode ficar com o meu, trocamos -- disse Bruno passando a sua bandeja para a garota e pegando a dela.

-- Sério? Muito obrigada! Deve ser a primeira vez na história que isso acontece, que demais. 

Bruno concordou, sorrindo e enfiando a goiaba inteira dentro da boca. 


sexta-feira, 12 de dezembro de 2014

Com o pássaro do tédio no ombro

A Cidade Baixa se transforma em outra quando a gente ta entediado. É outra Cidade Baixa em que esperam em pé na porta de alguma boate algumas mulheres tristes que têm estrias e os olhos perdidos. É outra Cidade Baixa que desde o começo da noite arde com mil olhos que se queimam com tanta merda no ar e nos livros enquanto outros dormem tranquilos dentro dos prédios querendo salvar suas almas e a gente aqui na rua tentando perde-la. 

É outra Cidade Baixa. É um bairro aonde as pessoas tem os pulmões cheios de melancolia e de fumaça. A Cidade Baixa é uma enorme mosca que se debate sentindo o cheiro do veneno pesticida. Cidade Baixa: um caminho, um descaminho, um encontro, um desencontro, uma ilusão, uma deprê, uma alucinação. Cidade Baixa é o bairro dos borrachos, em que a serenidade verde dos parques dá lugar a agitação da paranoia. É também o bairro das drogas, da tosse e dos vômitos. Fumaça, muita fumaça. Barulho, muito barulho. Gente, muita gente. 

Cidade Baixa é um bairro de muitos bairros. Muitas mulheres, muitos homens, muitos nomes, muitos assaltos, muitos táxis. Cidade Baixa é uma cidade dentro da cidade dos chás e dos colecionadores de livros. Porto Alegre é a cidade do não, do de jeito nenhum, do isso não é certo, isso não se faz, não venha, não vá, não acabe, não comece, não beije, não ame, não odeie, não viva, não se mate, não e não. Cidade Baixa é o sim no meio de tanto não. 

É o bairro das crises, dos bares irregulares, do esconderijo para se fugir da neurose da cidade que dispara paranoias elétricas e fantasmas de frustrações; É o bairro de uma geração de jovens opaca e mutante que não quer entrar pela cidade pela porta da frente, pois, pelo contrário, quer tomar de assalto o coração da cidade, enquanto bebem, fumam e transam quando começa uma chuva esquizofrênica sobre as pessoas, sobre os gatos, sobre os cães, sobre os ladrões, sobre os moradores. 

Quando se está entediado a Cidade Baixe se transforma em outro bairro. Ali nada parece cair. Tudo parece estar sustentado por uma rede invisível que envolve todo o ambiente. Percebe-se um zumbido, como de uma mosca, que vai de mesa em mesa. É o tédio que sai de você e vai envolvendo todas as pessoas e que vai passando pelos ombros, transmitindo um tipo de doença: a doença do tempo que não para de passar. 

Enquanto a maioria  se encontra protegida em casa, outros se encontram no fundo do inferno. Cidade Baixa é a imagem do bêbado gordo esquizofrênico que caminha sem camisa em meio as mesas todas as noites, ou de uma mulher que passa todas as noites vendendo coisas em uma cesta vazia, tem também o cara que se veste de Chaplin todos os dias para vender flores e aquele que gosta de correr de sungas mas apenas quando chove. 

Bem-aventurados sejam os os bêbados, os garções, os cachorros que latem no meio das ruas, os polícias parados nas esquinas, os ladrões, os mendigos, os idiotas, os bares, os restaurantes japoneses, os gritos, os vômitos, as ciclovias, os supermercados, as galerias, Bem-aventurados porque deles será o reino do tédio. 

Quando a gente tá entediado, a Cidade Baixa se transforma num bairro onde as pessoas têm os pulmões cheios de melancolia e fumaça. 

segunda-feira, 8 de dezembro de 2014

Post para um amor platônico de Facebook

Estou olhando tua foto do perfil no Facebook. Você lê um livro bastante séria. Você é tão bonita que pensei, por algum momento, que tua foto do perfil fosse de algum seriado americano que não conheço. Mas é só você.  Procuro algum traço familiar, algo como uma tatuagem que signifique alguma coisa sobre teu jeito e sobre tua personalidade. Eu poderia me apaixonar por você. Poderia passar a noite no teu apartamento, poderia andar descalço até a cozinha, abrir a geladeira e tomar um gole de água fria direto da garrafa. Você também poderia se apaixonar por mim e eu contaria que escrevi esse post para você. E contaria que segui anonimamente teus sinais de fumaça. Contaria que te stalkeei. Nem teria medo de te contar tudo isso. E você finalmente leria aquele livro para mim. Vejo as fotos em que você foi marcada. Você é mesmo bonita. Estou olhando suas curtidas e acho que nosso gosto musical não combina. Olhei longamente alguns dos teus posts e vi um sobre feminismo. Só olhei. Não curti e nem comentei. Ele não dizia nada de muito importante, mas ele é um pedacinho de você, cada palavra escrita lá é um pouco de você, uma coisa que saiu das tuas mãos, que saiu da tua cabeça. Como um ar que saiu da tua boca e que posso respirar. Eu olhei tanto para esse teu post que quase me perdi dentro dele. Mas você não sabe disso, você nem me conhece, você nem sabe que eu existo. Pensei em comentar algo. Pensei em seguida que não iria adiantar nada. Eu poderia voltar para a cama depois de beber a água e te ver ainda dormindo e de olhos fechados, numa noite quase fria. Poderia sentir tua mão debaixo do cobertor. E pensaria que tudo começou quando vendo uma foto do perfil apanhei uma porção de enigmas, cataloguei distâncias (você mora em outro estado), segui teus rastros, farejei teus gostos. Quando você toda séria e linda segurou aquele livro naquela foto do perfil, eu me rendi, incondicionalmente. 


Triste, porém mais feliz que a maioria (o manual para o doutorando em Filosofia que veio do interior)

Fazer um doutorado em Filosofia vindo de uma cidade e de uma família sem nenhuma experiência acadêmica é uma aventura mental que só compreendem com exatidão aqueles que estão metidos nesse trabalho bastante peculiar. Tudo começa com perguntas estúpidas: você faz o quê mesmo? E então você responde orgulhoso: faço doutorado. A outra pessoa segue perguntando: Ah, que legal, vai ser doutor, médico, né? Nesse momento você precisa respirar fundo e então tem duas opções: 1) diz que sim, vai ser doutor médico e se despede da pessoa, desejando à ela um bom dia (mesmo que por dentro prefira que ela seja atropelada ao cruzar a rua) e 2) você diz que será um doutor em Filosofia. Quando se escolhe esse segundo caminho, a outra pessoa começa a olhá-lo de uma forma estranha e diz coisas do tipo: Você vai ser filósofo? Os filósofos no geral não são meio loucos e depravados? Ou diz coisas assim: Todos os filósofos que eu já ouvi falar eram alcoólatras, drogados, inúteis, vagabundos, revoltados que só arrumavam problemas. Bem, temos que reconhecer que em parte essa pessoa tem razão quando diz essa coisas. Inúteis e vagabundos? Sim, somos inúteis e vagabundos. Arrumamos problemas? De certa forma, sim. Dificilmente acreditamos no liberalismo, não acreditamos no conceito humano de "progresso", desconfiamos da democracia representativa dos partidos oficiais, desconfiamos das convenções sociais e não temos muito respeito pelas instituições tradicionais, como a igreja e os militares, e ainda não nos damos bem com os bons costumes. 

Por um momento nosso interlocutor ficará escandalizado e poderá dizer que somos imorais, comunistas, esquedistas, ateus, depravados e bêbados. "Você vai morrer de cirrose". Você poderia responder: e você vai morrer por ser tão idiota. Nosso interlocutor não compreendeu que a bebida é o melhor amigo de quem tem que escrever uma tese filosófica, nessas noites solitárias quando se está em frente ao computador, com diversos livros abertos em cima da mesa, e a página na tela do computador está em branco. O álcool nesse cenário se transforma num tipo de mar estranho por onde navegam nossas ideias, nossos conceitos e nossos argumentos. Algumas ideias se vão assim que acaba a cerveja. Outras ficam, permanecem. 

Se você é um doutorando em Filosofia e tem uma biografia um pouco parecida com a minha, entenderá a exatidão desse post. Se você tem uma biografia um pouco parecida com a minha e considera a possibilidade de seguir uma carreira estudando Filosofia, não se desespere. Aqui vão alguns avisos: Cedo ou tarde descobrirá que um doutorando em Filosofia acorda sempre tarde, dorme muito tarde, chega sempre atrasado, tem olheiras, bebe muito, é um pouco triste, porém mais feliz que a maioria. 

sexta-feira, 14 de novembro de 2014

Analítica existencial da Gata Dasein II: o modo-de-ser da Dasein

O modo-de-ser da Gata Dasein é um pouco confuso, um pouco noturno. É o modo-de-ser parecido com as árvores, com as chuvas, com as latas vazias de cerveja. O modo-de-ser da Dasein é uma mistura de solidão com vodca. No fundo, todo o modo-de-ser é solitário e assim também é o da Gata Dasein. Na verdade, a Gata Dasein nunca vive o seu modo-de-ser. A Gata Dasein vive o modo-de-ser da cidade. O modo-de-ser da Dasein é o modo-de-ser das ruas, do movimento, das luzes, dos gritos e da merda. É um modo-de-ser bem complicado. Para entendermos o modo-de-ser da Dasein, primeiro temos que entender o modo-de-ser das janelas, se são tristes ou alegres, se por elas podemos ver a rua por onde passa um carro ou um homem e uma mulher. De todas as formas, é um modo-de-ser complexo. O modo-de-ser da Dasein é vagabundear deitada na janela e sentir a chuva em seu rosto, e ser a chuva, ser o vento noturno, ser o cheiro de cerveja, ser as onze da noite, ser uma árvore, ser uma mulher que passa, ser a fumaça do cigarro da mulher que passa, ser o cheiro das pessoas que vão até os bares. 

O modo-de-ser da Gata Dasein é bastante sério. Seu único sentimento de situação é a despreocupação. Seu sentimento de situação é um dia de chuva, uma chuva que molha as ruas, uma chuva que molha o teto dos carros. O modo-de-ser da Gata Dasein é nunca-ser-para-a-morte. É ver a cidade envolvida na merda e não saber que também se morre. O não-ser-para-a-morte da Gata Dasein é não saber que se morre envenenado com o cheiro da cidade. É não saber que os dias se apagam debaixo da chuva, debaixo das folhas das árvores, e que não há nada que a gente possa fazer. Esse modo-de-ser da Gata Dasein é passar os dias pensando que a tristeza não está aqui. A tristeza está nas árvores lá fora, nos prédios, nas pessoas que andam pelas ruas debaixo da noite, nos carros que pensam um depois do outro. O modo-de-ser da Gata Dasein é subir na janela e ficar durante toda a noite espiando para fora e dizendo: que se foda o mundo, a dona da noite sou eu, eu posso olhar por cima toda a merda da mundo. 

sábado, 8 de novembro de 2014

R R

Richard Rorty, o filósofo americano, era um peixe. Um peixe cínico, um peixinho alucinado perdido em um grande aquário cheio de água suja dos dias e das noites. Este aquário é a filosofia. Rorty representava todo o nojo e cinismo que se podia sentir pela filosofia acadêmica norte-americana. Rorty era um filósofo punk, o últimos dos filósofos anárquicos de uma geração totalmente dominada pela onda da filosofia analítica. Rorty, como filósofo, ia contra as boas maneiras na mesa e na cama da academia. O filósofo Rorty era partidário de jogar bola dentro de casa, irresponsável, e de cuspir no chão em frente aos poderosos. Uma de suas principais influências teóricas era Derrida, o filósofo indecente da França, que também zombou do jogo acadêmico norte-americano. Derrida e Rorty: duas moscas em meio ao cenário desumano da filosofia contemporânea. Ambos saíram do útero da anarquia. Ambos desgraçados. Heróis malditos de um cenário filosófico cada dia mais sem graça. 

Rorty representava a última possibilidade de fragmentação de uma geração de filósofos que muito cedo deixou de ser jovem e se tornou analítica. Essa também é a nossa geração, uma geração sem identidade que desde a graduação é educada para não ser obscura, para seguir a regra da clareza, da produção de proposições, da argumentação. Uma geração de estudantes que hoje tem vinte, trinta ou quarenta anos, que não se dedica mais a irresponsabilidade, que apoia a bandeira de seus pais e de seus professores, a bandeira da responsabilidade teórica, a bandeira da clareza contra a obscuridade, a bandeira da clean image, do não ao cigarro, do sim à cultura da mente e do corpo são, dos pensamentos claros e transparentes, dos pensamentos razoáveis e argumentativos, das boas razões e da boa conduta. 

Talvez sem sabê-lo Richard Rorty tinha um pouco de Walter Benjamin, um pouco de surrealismo, um pouco messianismo. Talvez sem sabê-lo ele também oferecia um pouco de ruptura ao mundo pequeno da filosofia institucionalizada. O que se deve ter claro era que para Richard Rorty, dentro desse mundinho da filosofia dominado pelos analíticos, era melhor atravessa-lo através de ofensas, através de um riso debochado, através de um pragmatismo irônico, através da literalização da filosofia, através de uma anti-epistemologia, através de uma seringa com heroína injetada nas veias da tradição filosófica, através de um discurso filosófico que funcionava como uma guitarra elétrica.

Necessitamos de mais filósofos como Richard Rorty. Filósofos que se pareçam com aquelas mulheres que correm peladas pelas ruas de Porto Alegre, filósofos que despejam venenos nas águas transparentes da filosofia analítica, filósofos que nos fazem escutar um pouco de rock no nosso saturado ar filosófico, filósofos que nos fazem ver mais aves no céu, filósofos nos fazem dar mais beijos nos parques. Necessitamos de filósofos irresponsáveis, que façam chover vodca do céu escuro da filosofia.

Não queremos mais discursos transparentes, não queremos mais argumentos e apontamento de falácias. Não mais. Queremos a chuva de vodca rortyana, uma chuva contaminada pela ironia, contaminada pela lua, contaminada pela irresponsabilidade. 

terça-feira, 4 de novembro de 2014

a eternidade não foi feita para nós

o tempo é tão pesado 
para você
quanto é para mim? 
a possibilidade dos cabelos 
brancos e das rugas e
das coisas que passam e passam até deixarem
de passar. eu
pelo menos me 
importo e me espanto

morrer deveria ser 
inaceitável 
só que a eternidade 
não foi feita para nós 
porque a vida acaba 
porque ficamos mais velhos 
porque temos tanta dor. a dor 
assusta, aquelas dores à noite, sua vó 
no hospital, o silêncio

o tempo passa mais rápido para 
nós 
os carros passando lá
 fora 
a gente queria que o tempo parasse de 
passar
mas a eternidade não foi feita para nós

nossa vida tem esse cheiro 
de passado 
não sei por que que
nossa vida tem esse cheiro de 
morte 
casas vazias ruas vazias cidades inteiras 
vazias,
a eternidade
não foi feita para nós

ela é a cópia despedaçada do tempo
de Borges
a eternidade é um telefone que não toca
é a música de uma festa que não acaba 
é o olhar  que olha as costas de quem vai embora
é o tempo que o suor leva para secar nas costas em
um dia de muito calor 
a eternidade é tudo o que não dura apenas um final de semana ou
uma vida inteira 

eternidade é tudo aquilo que não foi feito para nós


agora, 
você 
dormiu

domingo, 19 de outubro de 2014

deslogo o face desligo o note abotoo a camisa amarro o cadarço afivelo o cinto ato o nó da pulseira prendo o gato bloqueio o celular fecho o guarda roupa tranco a porta fecho cadeado e saio te encontrar e saio pensando que por mais que me prepare para o seu olhar amarrando deslogando afivelando prendendo abotoando trancando fechando bloqueando ele é sempre uma coisa que não consigo aprisionar e também é a única coisa que quero livre sempre e penso que gosto de você assim sem deslogar afivelar prender trancar abotoar deslogar desligar como se nos teus olhos todo o enredo do mundo parecesse sem desfecho e nas expectativas dos seus próximos olhares mesmo sabendo que eles eu não desligo deslogo prendo fecho abotoo tranco bloqueio afivelo amarro e que talvez seja essa justamente toda a graça e toda a merda

quarta-feira, 15 de outubro de 2014

Prêmio Sakamotinho de melhor pior jornalismo ativista

Léo Sakamotinho era um jornalista ativista. Ele tinha muito orgulho do que fazia. Posso não mudar o mundo, mas estou fazendo a minha parte, ele dizia com um sorrisão forçado na cara. Em uma de suas reportagens ativistas, Sakamotinho se vestiu de índio para testar o preconceitos dos seus alunos da PUC SP, onde também era professor. Por mais de um mês ele deu aula no curso de jornalismo da universidade vestindo um short Adidas e usando um cocar ma cabeça para desafiar o preconceito da classe média paulistana contra o índio. Uso cocar como ato político, dizia o jornalista Sakamotinho. 

Em sua primeira aula vestido de índio, Sakamotinho contou que um dos alunos o agrediu fisicamente com o último livro do Olavo de Carvalho e outro com um salame que trazia no bolso do casaco. Porém com o tempo ele passou a ser aceito pela turma, que fazia um grande batuque nas classes quando ele entrava na sala e às vezes rolava até uma dança da chuva antes do intervalo. 

No entanto essa não é a regra, diz o jornalista em seu blog. Na maior parte das vezes, a universidade, lugar em que supostamente deveria haver maior liberdade e tolerância, ainda é cheia de preconceitos e comportamentos reacionários. Só nos últimos quatro anos, segundos dados levantados pelo próprio Sakamotinho, houve mais de dois trilhões de reclamações envolvendo a roupa ou o jeito de falar de algum estudante. Esse foi o caso de Gerson Lúcio, aluno do sexto semestre de Filosofia da mesma universidade. 

Gerson gosta de se vestir como um mendigo e ir assim na universidade para impor sua identidade contra o capitalismo higienista burguês. Na última semana, por exemplo, Gerson frequentou as aulas a semana toda vestindo chinelo, calça de moletom e uma camisa velha do Palmeiras. Durante toda aquela semana, ele também não tomou banho. Olha, cara, estou acostumado a ser ofendido pelos corredores da universidade, para mim isso é normal, nem ligo mais, dizia o estudante. As pessoas evitam se aproximar muito de mim, por causa do cheiro e tal, continuava contando. 

A vontade de se vestir como um mendigo para enfrentar o sistema capitalista começou quando Gerson ainda era uma criança, contou o jornalista num post que viralizou na web. Como assim? Eu nunca quis me vestir como um mendigo, cara, afirmava Gerson. Na escolinha, com menos de sete anos, ele já esculachava e mostrava o preconceito de todos os coleguinhas, segue o texto do Saka. Eu nunca me vesti de mendigo, mano, do que você ta falando?, confirmava o estudante. Será que você pode parar de me seguir agora?, finalizava Gerson em um pedido velado de ajuda. 

Gerson muitas vezes foi barrado na entrada da própria universidade. As festas do curso ele foi proibido de frequentar. Enquanto os colegas ostentavam nas festas carros do ano e roupas de marca, Gerson aparecia puxando um carrinho de supermercado e vestindo um saco de batatas. De onde você tirou isso, cara? eu não to querendo mostrar o preconceito de ninguém, é só a roupa que curto, ele confirmava. Quem está dizendo que me visto de mendigo é você, para mim são roupas normais, afirmava para depois perguntar sem perder a rebeldia contra o sistema: será que agora você pode parar de me seguir pelo campus? 

Durante quase três meses Sakamotinho, em seu trabalho de jornalismo ativista, acompanhou o estudante Gerson nas suas idas a universidade. Sério, ele não parava de me seguir, eu fiquei assustado, contou Gerson. Segundo Saka, pelos corredores ninguém prestava atenção em Gerson quando ele passava, era como se o estudante fosse um papel amassado jogado no chão, escreveu no blog. Não precisa me ofender né, disse Gerson, agora é sério ou você vai embora ou eu chamo a polícia. 

Sakamotinho continuou seu texto denúncia dizendo que apesar de se vestir de mendigo, Gerson não economizava na hora de fazer um lanche no intervalo das aulas. Sempre comia um pastel de frango na cantina da universidade. Até aqui você me segue, meu deus, confirmava o aluno. Já deu pra mim, vou ligar para a polícia, relatava o jovem Gerson, que depois pegou o celular com uma das mãos enquanto a outra segurava um pastel de frango engordurado. Alguns minutos depois a polícia chegou no local e o jornalista Sakamotinho foi obrigado a entrar na viatura sem ganhar nenhuma explicação. Não podemos aceitar que a polícia seja a força repressora do Estado dentro do campus, tuitou o jornalista logo após ser liberado pela polícia. 

sexta-feira, 10 de outubro de 2014

A Gata Dasein

A Gata Dasein, a gata recém castrada, voltou sonolenta do veterinário, assim como o seu dono, que acordara de uma noite que parecia não ter fim. Fazia muito tempo que a realidade dos dias era assim para ele: uma espera pela chegada das horas livres, dos feriados, das noites no bar, dos finais de semana e das férias. Porém, apesar de a importância dessas horas livres na sua vida e de conviver com a aflição de ter que esperar por elas, elas nunca eram suficientes para preencher no seu peito o vazio deixado pelas outras horas. O dono da Gata Dasein se sentia culpado por isso. Seria possível injetar a fome de viver nas entranhas? Poderia criar um comprimido que prolongasse o sentimento bom das horas livres até o restante do tempo? Como ele poderia reverter a efemeridade que era a sua vida? Ainda sedada da anestesia da castração, a Gata Dasein riu, juro que ela riu um riso debochado, um riso de quem tem as respostas que seu dono procura. 

Procura e nunca encontra. Aliás, encontrar nunca foi o forte do dono da Gata Dasein. Não bastavam apenas as chaves que ele nunca encontrava quando precisava sair de casa e estava atrasado, ou os óculos que perdia toda manhã depois de acordar, não encontrava também a ponta do lacre de abrir a embalagem da bolachinha recheada, não encontrava na web o livro que queria baixar, não encontrava seu casaquinho xadrez preferido quando se arrumava para ir para a aula, não encontrava sua vocação, não encontrava um amor ou um motivo para continuar. E como se procurar tudo isso e não encontrar não fosse suficiente, o dono da Gata Dasein se sentia culpado por não lembrar onde deixou as chaves, por não saber em que canto jogou o casaquinho xadrez preferido que deveria estar no cabide ao lado da porta do quarto. Sentia-se culpado pela sua vida de estudante que apesar de boa parecia nunca dar retorno e com seu irmão e companheiro de apê, que se esforçava tanto para ser o melhor que podia. Era como se tudo o que devesse ser estivesse ali com ele o tempo todo, como se as coisas que tinha fossem quase tudo o que poderia querer. No entanto sempre faltava alguma coisa. Era como se acordasse de manhã e estivesse procurando seus óculos para ver perto, quando o que precisava mesmo era encontrar óculos para ver de longe. Afinal, que sentido tem ver tudo no detalhe?  Talvez a vida deva parecer boa apenas quando vista de longe, ele pensava. 

Esse tipo de culpa dominava o dono da Gata Dasein, a gata recém castrada e ainda grogue de anestesia. Parecia que nada no mundo era suficiente para alegrá-lo de uma vez por todas. Vivia perguntando-se  por que não se contentava com o pouco ou se estava querendo demais. A resposta para essa questão, assim como a ponta do lacre de abrir a embalagem da bolachinha recheada e seu casaquinho xadrez preferido, ele nunca encontrava. Só quem parecia encontrar era a Gata Dasein, que, um pouco zonza, observava-o comendo sua bolachinha com café e depois procurando o casaquinho xadrez por todo o apartamento, enquanto saia para a aula marcando pelo celular de sair para beber com alguma pessoa mais tarde. A Gata Dasein, cambaleando sem rumo pelo apartamento, sabia muito bem que nenhum quase iria substituir o todo que faltava para seu dono, ela sabia também que a sensação de ser quase feliz não chega nem perto da sensação de uma felicidade plena e real. 

segunda-feira, 6 de outubro de 2014

nós 
estando sós 
damos nós
nas cordas 
nas tripas 
provocando cócegas em
 nós 
procurando companhia em
 nós

sós
nós
você 
está
comigo
o tempo
todo

sexta-feira, 26 de setembro de 2014

Vote consciente

A eleição, essa grande festa da democracia, para mim é como qualquer outra festa: eu vou e não pego ninguém. Só que até aí tudo bem, nem ligo mesmo. O que me desgraça da cabeça é essa galera pedindo "voto consciente". Um exército de rapazes leitores de Foucault e que usam sandália de couro e bermuda da Adidas pede, com a voz tranquila que é característica da cara de pau, que a gente vote consciente. Só que se você deixar a conversa se alongar por mais de dois minutos perceberá que o votar com consciência nada mais é do que votar no candidato dele. De todos os vermes parasitas, o que mais me irrita é esse que vive para pedir o voto consciente dos outros. 

Não me levem a mal, o meu voto é totalmente consciente. Tenho total consciência de que a merda é inevitável e de que estou votando em qualquer porcaria. Meu critério para esse voto consciente é apenas um: tento imaginar o candidato bebendo comigo. Não pode ser churrasco depois do futebol (os piores candidatos são aqueles que vão para o churrasco depois do futebol). Tem que ser em algum bar da minha escolha, em algum boteco bagaceira da CB. Que seja o Speed. Se não consigo imaginar o candidato lá bebendo e rindo comigo, escutando sobre os livros que li e os filmes que curto e xingando a galera idiota que tá no Pinguim, ele não tem o meu voto de jeito nenhum. Nenhum candidato a deputado ou a governador que não tenha morrido de rir com o Morto muito louco ou que não ache o Zidane o jogador mais foda que já existiu  no planeta merece me representar. Isso, galera, é votar com consciência. 

terça-feira, 16 de setembro de 2014

sexta-feira, 12 de setembro de 2014

A menina que não tinha rosto

Todas as pessoas que nasciam naquela pequena aldeia tinham uma peculiaridade: elas nasciam sem rosto. Lá se aprendia logo que desde os primeiros momentos de vida cada ato e pensamento da criança seriam um influenciador direto de todo traço e detalhe que surgiria em sua face, a princípio inexpressiva. O susto do nascimento já poderia dar para cada um os rasgos entre as sobrancelhas. A falta de ar durante uma noite de asma poderia dar uma arrebitadinha no nariz. As canções de ninar da mamãe, que enchem a casa de amor, poderiam dar a alguém a concavidade dos lábios, para desde sempre ensaiar longos sorrisos, ainda que no começo faltem os dentes. Não se sabia por que, diferentemente de todo mundo na aldeia, Luna -- que era conhecida na escola como "A menina sem rosto" ou apenas "Luna sem rosto" -- não conseguia desenvolver os traços e os desenhos de seu rosto. 

Mãe Canchinha, a velha benzedeira da aldeia e que costumava profetizar alguns acontecimentos enquanto balançava um sino velho com um pêndulo enferrujado, dizia que Luna não tinha um rosto porque não tinha sentimentos. Essa menina não é do céu e nem do inferno, ela dizia e balançava o sino (blem blem). Essa menina não tem um lado, ela é do meio, ela não faz nada, ela não fala nada, ela não sente nada, ela não é nada, ela é o próprio nada (blem blem blem) -- completava. No entanto havia também quem acreditasse que Luna tinha, sim, sentimentos, só que lhe faltava um rosto para poder expressá-los. Na verdade era impossível saber o que tinha faltado primeiro para a menina que não tinha rosto. 

Os pais de Luna fizeram tudo o que podiam. Encheram a menina de mimos e amor, de canetinha de cor e de vestidinhos de flor. Porém nada fazia surgir em Luna seu primeiro sorriso, seu primeiro choro, seu primeiro berro ou sua primeira dor. Nada do que faziam parecia funcionar e ajudar a tirar a menina que não tinha rosto da inércia do não-sentir e do não-ser. 

Assim ela cresceu: não gostava e nem desgostava de seus pais e de seus irmãos, não ouvia música, não costumava ler, não se interessava pelos meninos. anulava seu voto nas eleições da aldeia, usava sempre frases neutras nas mais acaloradas discussões e não entendia como as pessoas podiam se apaixonar. Imune a qualquer prazer ou frustração, uma das únicas opiniões sustentadas por Luna era de que não valia a pena ter uma boca, para dar todas as gargalhadas que alguém poderia dar em uma vida, e nem olhos, para tantas quantas fossem as lágrimas que sempre se intercalam com as alegrias. 

-- Nem tudo está perdido -- dizia Mãe Canchinha -- Luna, a menina sem rosto, ainda pode vir a ser uma grande filósofa analítica. 

Blem blem blem. 


quinta-feira, 11 de setembro de 2014

Alana II

Os dois verbos preferidos de Alana eram amar e ser, mas ela não se dava conta que nunca os utilizava juntos na mesma frase. Com o primeiro ela podia falar de todas aquelas coisas que ela não vivia sem. Amava viagens de trem; amava rock inglês; amava beber vinhos antigos e ficar com a boca roxa; amava viajar; amava conhecer cidades e pessoas novas; amava ser livre para poder amar quem bem entendesse e pelo tempo que pudesse. Com o outro verbo, Alana -- com toda a segurança que ela fingia ter -- era. E ela era muito, era o máximo que podia ser, era de toda coração, era com toda a força do mundo, era tanto que era invejada por tanto ser ou por tanto ser sem ser. Alana ia sendo. Alana ia. 

O verbo ir pode não estar na lista de verbos preferidos de Alana, mas com certeza estava entre os mais conjugados por ela. Alana adorava falar que estava indo e que ia para onde bem entendesse. Alana não ficava, Alana ia. Ela gostava mesmo era de ir. Sempre dizia: me chama que eu vou. E lá ia Alana, às vezes nem precisava chamar, lá vai Alana, já foi Alana, de novo. 

Certo dia Alana se entregou a uma reflexão que teimava aparecer de vez em quando: ela nunca tinha dito em alta e bom som o verbo ser no presente do indicativo seguido pelo amor adjetivado no feminino na mesma frase: sou amada. A controvérsia era que Alana não amava ser e por não amar ser preferia ser o que não era de fato. E por não ser o que era de fato, Alana precisava sempre estar indo. E quem sempre está indo não fica, não para e não volta. E quem não fica, não para e não volta não se deixa amar e não é amado.   

Então decidiu voltar para o antigo endereço, para a casa que ela jurou há tempos não voltar mais. Era o único lugar que ela pensava que poderia ser e amar na mesma frase. Vestiu-se de si, por dentro e por fora, e foi pela última vez. Depois desse dia nunca soube de Alana e não sei sua reinvestida ao passado deu certo. O que sei é que aqui -- onde ela sempre passava quando estava indo a algum lugar, com as pernas firmes de quem sabe que tem que ir e os olhos marejados de quem não sabe para onde tem que ir -- ela não veio mais. 

Gosto de imaginar um final para Alana. Na minha imaginação, ela não esqueceu nunca mais que quem ama sem ser e quem é sem amar está sempre indo, indo para lugar nenhum. E na sua imaginação, o que acontece com Alana? 

sábado, 23 de agosto de 2014

Quando eu era criança, alguém cagava no meio da rua da minha casa. Ninguém sabia quem era o filho da puta que cagava no meio da rua que a gente morava. Mas o cara cagava (quer dizer, eu achava que era um cara, tipo, não queria imaginar uma mina cagando no meio da minha rua). O foda era que nem dava para botar um guardinha para cuidar da rua e descobrir quem era porque o cagão não escolhia dia e nem turno. Não seguia uma ordem, era meio no improviso. Quando a gente menos esperava, ele sentava o rabo no meio da rua e cagava para desespero geral da nação. Talvez nem fosse planejado, talvez fosse apenas algo que dava vontade de fazer na hora, assim de repente. Meu pai dizia que era brincadeira de moleque, mas, sei lá, eu achava que aquele cagalhão parecia mais trabalho de um elefante do que de uma criança. E criança, apesar de tudo, não é tão safada assim. Ela não ia sujar tudo só de sacanagem. O cagão tinha que ser um adulto frio e calculista e com um intestino domado. 

O negócio é que chegou uma hora que tava começando a incomodar. No começo é engraçado, mas depois fica chato. Sério, que tipo de pessoa caga no meio da rua? Lá, no meio da rua, alguém cagava lá. O pior é que merda não some assim do nada. Quando alguém caga no meio da rua, alguém precisa ir lá e limpar. Fora que fede, né. Na rua em que eu cresci, todo mundo se conhecia, bem interior mesmo. As crianças brincavam nas calçadas e as tias ficavam nas janelas fofocando. Ou seja, cagar nessa rua não era como cagar numa rua deserta, ou numa rua tão movimentada que qualquer um poderia cagar e os dejetos sumiriam em segundos, como acontece com os dejetos de cavalos. Era a minha pacata rua, cara, e alguém tava cagando lá. Cagar na minha rua era quase como cagar na sala de estar do Big Brother Brasil. Ninguém poderia escapar. Mas esse cagão escapava. 

A janela da casa dos meus pais ficava bem de frente para a rua. Isso quer dizer que a sujeira, quando aparecia, ficava bem na nossa cara. Parecia jornal sendo entregue bem na entrada da casa. Um jornal que só tinha notícia ruim. Só que não era jornal, era uma bosta. Não dava nem pra se preparar psicologicamente, porque às vezes acontecia uma vez por semana, às vezes duas e, quando o cagão tava inspirado, umas três. A gente que morava na rua já tava começando a se cansar. 

Na minha casa moravam eu, meus irmãos e meus pais. Durante um tempo, minha vó morou com a gente. Nem lembro bem o por que, mas ela tava lá junto. Daí que minha vó nem podia andar direito, né, porque, tipo, ela é velha. Velho é foda. Velho não vem com manual e a gente tem que ir levando. Velho não funciona direito. Tem que pegar no tranco. Minha vó não se movia quase nada, só o suficiente para sobreviver. Coisa de gente velha. 

Acontece que a gente tinha um computador em casa. Ninguém mais na família tinha um computador com internet. Só a gente. E minha mãe teve a genial ideia de me colocar ensinando a velha a  fuçar na internet. Claro, como se isso fosse mudar a vida dela aos trezentos anos. A pessoa é incapaz de controlar a própria bexiga mas tem que ter um e-mail. Pensem, se naquela época já era foda ensinar um adulto saudável a logar na internet, imaginem como era ensinar uma pessoa que nem sabia em que ano ela tava. Foi foda. Eu queria me matar. Já não bastava um cara cagando na minha rua, ainda tinha que explicar para minha vó como funcionava a internet. 

Como eu não tinha muita paciência, ensinei foi é porra nenhuma. Eu fiz o que qualquer ser humano normal faria: entrei no chat do Terra, na sala de idosos, e falei: conversa cas pessoa, vó. Eu pensei: ela não tem nada para fazer, pelo menos no chat ela pode conversar com os outros velhos e se pá encontra um amigo da idade dela. 

Com isso eu tinha resolvido um dos meus problemas. Faltava o mais sério. A cagada na rua continuava. E parece que estava acontecendo mais forte do que nunca. O inferno de tudo foi quando o individuo começou a escolher alvos. Era um trabalho sinistro e minucioso, mas cada morador tinha a "sua hora". Num dia, largou o barrão na porta da primeira casa, no outro dia, na segunda, e assim por diante, uma vez por semana, subindo a rua e cagando. Não adiantava fiscalizar, porque era um dia randômico da semana. A única certeza era a de que se semana passada ele tinha cagado na frente da casa ao lado da sua, agora a casa escolhida seria a sua. Era desesperador ver que o cagão estava se aproximando cada semana mais.  

Eu sabia que a nossa vez iria chegar. Com a certeza, veio a coragem. Os vizinhos poderiam ser covardes, mas não eu. Eu não deixaria um vagabundo qualquer cagar na porta da minha casa. E como ficava o tempo todo em casa de bobeira, a minha mãe já tinha me manda ficar de olho e ainda tinha me dado o aviso: se cagarem aqui, quem é limpa é tu. Foda, a merda ia acabar sobrando pra mim. Porém bati no peito e respondi: não vou limpar nada porque nessa casa cuzão nenhum vai cagar, 

Parceiro, a parada tinha virado pessoal. Montei uma escala de vigia, fiz gráficos, estudei os outros casos, tentei entrar na mente do cagão. Cheguei a cagar de porta aberta com a casa cheia de visita porque queria sentir o que ele sentia. Eu queria pensar o que o cagão pensava. Decidi passar os dias e as noites na janela, cuidado a rua. Era cansativo, mas iria pegar esse cu frouxo de qualquer maneira. Meu único foco era o cagão. Não me alimentava mais, faltava a escola, não conversava mais com os amigos. Minha única ligação com esse mundo era minha vó senil digitando com um dedo só no computador da sala. Era bom porque ela não me atrapalhava e ainda me fazia companhia. A gente conversava sobre as coisas e ela parecia entender minha obsessão com o cagão. Por um momento cheguei até a amar aquela velha. Brinks, nem chegou a tanto. 

Num certo dia, lá pelas duas da madrugada, ela me disse que tava com sede. Aí foi aquela coisa de velho. Não dá pra levantar pra nada, né. Fui buscar a água e quando voltei entreguei o copo para a vó. A velha tava toda felizona batendo papo com as pessoas na sala do chat. Voltei para meu posto de observação na janela e bateu aquele ventinho gostoso da madrugada. Só que, puta que pariu, veio junto com o vento um baita cheiro de merda. CARALHO, CHEIRO DE MERDA, MERDA, CHEIRO DE MERDA, CAGARAM ALI NA PORTA. Onde foi que errei?, eu me perguntava. Não estava acreditando. Havia sido derrotado, humilhado pelo cagão. Abri a porta da casa e confirmei: o barrão tava lá. 

Falei com minha vó e ela disse que não havia escutado nada. Velha inútil, pensei. Agora teria que limpar a bosta toda sozinho. Eu estava puto, puto mesmo. Queria matar a pessoa cagona. E enquanto isso minha vó irritante pedindo mais água. Perdi a paciência e gritei: CALMA, VÓ, JÁ VAI, CAGARAM NA NOSSA PORTA, QUE MERDA, VAI LÁ VER AQUELA BOSTA. Ela que fosse encarar o troço para ver se caia na real. Velha escrota. E ela foi. Quando ela foi, eu,  puto da vida, fui usar o computador para contar para algum amigo que a tragédia estava feita. Minha vó tinha deixado a aba da sala do chat, que ela passava o tempo todos os dias, aberta. O que li sem querer destruiu toda a fé na humanidade que ainda existia em mim. Não podia ser verdade. Só podia ser sacanagem: 

Dona Gema Pitareli fala para todos: 
CAGUEI NA RUA DE NOVO HAUAHUAHAUAHAUHAUA

Toda velha é filha da puta. 


sábado, 16 de agosto de 2014

poema para o gato dasein

os gatos são os únicos amigos 
que alcançam em nós o carinho 
quando não sabemos mais 
de onde tirar um irmão 

terça-feira, 12 de agosto de 2014

Cadê você?

procura-se 
fotografias espalhadas 
coladas nos postes 
por toda a cidade
há recompensa 
ligar para 
urgente
cadê você? 
desaparecida favor aparecer 

segunda-feira, 4 de agosto de 2014

Alana

Desde criança Alana sabia que não tinha raízes. Tinha nascido para o mundo. Desde cedo a mochila era a denúncia do desejo de partir. Para onde, menina?, perguntavam. Eu não sei, para qualquer lugar do mapa, respondia. Na escola, a única aula que lhe agradava era a de geografia. E isso por causa dos mapas. Bastava o professor expor o mundo em enfrente à classe, que Alana tinha a confirmação da verdade mais forte de sua infância: o mundo poderia ser dela. 

Na adolescência começou a escutar canções inglesas para imaginar outra parte do mundo. A música alta no quarto e a mente de Alana em imagem do não vivido. E ela pensava que os outros países são também formados de gente como ela, que músicos e personagens são tão pessoas quanto ela. Por isso, de outros mundos ela queria participar. O sotaque ela imitava. A brancura ela vestia. O humor ela fingia. Mesmo o frio ela fazia de conta. Até o dia que Alana cansou de imaginar. Era hora de acontecer e fugir. 

Mas quando saiu de casa, olhou à volta e viu que não seria tão fácil. Ter o mundo era complicado. Dinheiro e força são os maiores bens de um viajante, concluiu depois da primeira frustração. Voltou para casa. Novas músicas e outros discos acariciavam aquela adolescente, para quem a rebeldia era um jeito honesto de viver inconformada. 

O que ela queria era o outro, o que ela não sabia o que queria. O desconhecido. Aquele que seu corpo não habitava. As pessoas que sua carne ainda não conhecia. Assim descobriu o teatro e isso serviu como alívio. Catarse para um espírito inquieto, o teatro virou sua casa. 

E também a literatura escrita em outras línguas. As coisas contadas em páginas escritas em estranhos idiomas. Seu único desejo era entregar-se ao estranho. Como um barquinho de papel , deixou-se levar nos rios contados por Albert Camus. Trancada no seu quarto, Alana viajava com Camus para o lado de dentro. 

Com as amigas, ela viajava para o lado de fora. Mergulhava numa piscina de bebidas e flores, de festas e suicídios. Viu o lado negro e bebeu vinhos brancos. Morreu. Viveu. Cresceu. Saiu de casa e foi morar com as amigas. Estabeleceu aos poucos uma fortaleza, porto para as várias voltas que daria. 

Alana: onde estará agora, adulta e mulher? Casada? É fácil pensar que não. Mulher como ela não tem raiz: voa. Alana era um balão arrastado em fogo. Talvez esteja agora em um trem, adormecida, cansada daquilo que decidiu ser. Uma nova cidade, um novo ar, aguarda por ela. Novas gentes. Alana quer o novo de novo e de novo, se repetindo rumo ao infinito. 




terça-feira, 29 de julho de 2014

Analítica existencial do Gato Dasein

A julgar pelo seu aspecto, o gato que espia as ruas da CB pela janela do apartamento vive bem. Ninguém sabe bem por quê. É bem provável que o gato apenas gosta de estar vivo. As condições de vida do gato, segundo o seu próprio ponto de vista, são satisfatórias. 

É difícil analisar fenologicamente a paz de espírito de um gato. No entanto, cor que se observa na superfície das coisas vivas pode servir de parâmetro para um começo. 

O gato está cada dia mais amarelo. E ainda que o amarelo na bandeira do Brasil simbolize o ouro e as riquezas materiais, e ainda que o amarelo do gato o faça parecer reluzente e vivo, e ainda que o gato viva no Brasil, o gato não escolheu a cor que tem e, logo, sua tonalidade não significa nada. A cor amarela do gato diz respeito unicamente ao seu estar-jogado-no-mundo: se vive bem, se está feliz, o gato fica mais amarelo. 

O gato na janela cresce em direção às ruas movimentas da CB. Isso significa que ele está cada vez mais inclinado para fora da janela e do apartamento. Isso significa que o gato se importa, ainda que discretamente, com o lado de fora do apartamento. 

Dizer que o gato cresce em direção às ruas é importante porque existem coisas que crescem para outras direções. As raízes, por exemplo, crescem em direção ao fundo da terra. As árvores crescem em direção ao sol. Já os fios elétricos dos postes de luz crescem para os lados sobre as nossas cabeças. 

Um dia sem nada para fazer o dono do apartamento fotografa o gato com o celular. Algum tempo depois toma um susto ao encontrar a foto nos arquivos. O susto ocorre porque o gato era muito pequeno no dia que a foto foi tirada. Mas, principalmente, o susto se dá porque o dono do apartamento não viu o momento exato em que o gato cresceu. E o gato cresceu. Cresceu em direção às ruas da CB. 

É inútil argumentar contra o crescimento de um gato, assim como é inútil se espantar com a diferença em seu tamanho em um dado intervalo de tempo. Um gato cresce. Um gato vivo cresce porque precisa crescer. Se não cresce é porque está morto e, dessa forma, não é um gato vivo. Para todo gato vivo: um crescimento.  Esse gato cresce em direção às ruas da CB. 

Um gato recém morto ainda é um gato. No entanto, em poucos dias entrará em decomposição e deixará de ser um gato. Por isso é importante saber que quando se lê "gato" nesse esboço fenomenológico deve-se ter em mente um gato vivo. 

Não se pode notar o crescimento do gato. O que se pode fazer é comparar o tamanho do gato hoje com o tamanho do gato em uma foto antiga em que o mesmo gato apareça. É importante que seja o mesmo gato. Seria ridículo querer comparar o tamanho de um gato usando a foto de outro gato. Mas também é impossível observar em tempo real o movimento crescente de um gato vivo. 

Quem não é um gato que espia apela janela de um apartamento as ruas da CB não tem direito de ficar sua existência inteira sem fazer nada enquanto acontece o próprio crescimento. Nesse caso o que se pode fazer é ficar entediado e fotografar o gato com o celular. No entanto, a foto retrata o estado atual do gato e não o processo de desenvolvimento pelo qual o gato passa. O pensamento não vê mas ele deduz: o gato cresce. 

Essa conclusão do pensamento é inobservável. Porém o pensamento pode provar que o gato cresce. Basta recorrer às técnicas científicas com seus procedimentos forjados em laboratórios. O olho nu é incapaz de ver o gato crescer, mas ele cresce. 

A foto antiga do gato pode ser uma prova empírica do crescimento do gato. No entanto, ela precisa passar por uma rigorosa análise para se saber se não sofre de alguma fraude. O dono do apartamento sabe que a foto antiga do gato não foi alterada. A foto antiga do gato não é uma fraude. O gato cresce. Mesmo que ninguém veja. Cresce para fora do apartamento. Cresce em direção às ruas da CB. 

O gato está na janela. Mas o gato está na janela assim como a tela está na janela? O gato está na janela mas parte dele não está mais na janela. e isso porque o gato cresce para fora da janela. 

O gato quando escuta alguma coisa vindo lá de fora se inclina na janela e parece que tem intenções suicidas.  Porém é o oposto o que ocorre: é uma vontade de viver mais e melhor. E isso não quer dizer que o risco de morte não exista. Por isso são importantes as telas na janela do gato. 

O sujeito que é capaz de deduzir o crescimento do gato também é capaz de deduzir que o gato gosta de viver. Ele pensa que talvez haja uma justificativa para o gato se inclinar tanto para fora da janela e essa razão não é dar fim a si mesmo. 

Embora o gato olhe tanto para as ruas do lado de fora da janela, é mais provável que seu desejo seja viver mais e melhor e não se matar. Senão ele não estaria cada dia mais amarelo. É o impulso de viver mais e melhor que leva o gato a se arriscar tanto na janela olhando para as ruas da CB. 

O gato até gostaria de passar pelas telas e escapar. Ele quer ficar mais e mais perto das ruas. O gato não quer mais viver apenas dentro do apartamento. O gato cresce para o lado de fora. O gato tem esperança e está motivo. Por isso o gato está feliz e amarelo. O gato está cada dia mais perto de salta e por isso vive cada dia mais e melhor. No entanto, se tudo continuar como está, o gato nunca irá fugir. 

Em todo caso, uma possibilidade de viver mais e melhor chama o gato para as ruas da CB. 

domingo, 20 de julho de 2014

a vida é uma festinha de criança 
que a gente leva salgados num potinho amarelo
um potinho com tampa que não encaixa 
e torce para alguém comer 
eu só trouxe para você
os meus salgados no potinho amarelo 

a gente se perde na vida 
como quem acorda no meio de uma hipnose 
pensando que hoje 
é ontem 
ou semana que vem 

a gente se perde 
na vida 
como quem dorme num filme 
que acabou de começar





domingo, 13 de julho de 2014

V de Vampiro

Depois da meia-noite é a noite inteira. A hora viva sem luz do sol é quando os ratos e as baratas já podem andar sobre os pratos sujos esquecidos na mesa de jantar, os grilos podem cantar sem timidez e os cães  abandonados devoram restos de carniças pelas calçadas das avenidas centrais. É aí que o sino da igreja não toca para mais ninguém. As nuvens não fazem mais sombra. É a hora sem sombra que também é a hora mais sombria. Tudo aqui é assombrado. O valor do dinheiro deixa de brilhar, as poças da rua não refletem a luz da lua e as pessoas se camuflam e se transformam em partes da noite. Essa é a hora e as vez dos esquecidos, quando vem à tona tudo o que não é certo; é o tempo das verdades desveladas. Aqui nessa hora não há cansaço e nem esperança: só exaustão e agonia. Os zumbis com dentes de morcegos, vencidos pelo tédio, são obrigados pela noite a satisfazerem seus instintos. E são muitos e muitos os que saciam os seus impulsos sem questioná-los. Há um despertador em cada uma dessas criaturas, e todos tocam o alarme da fome. E eles saem, como zumbis, atrás de sangue. Perambulam pela noite atrás da carne preferida. E como quem corre contra o tempo, eles tem pressa em sua caçada. Mas, inteligentes como um gato frente ao rato acurralado, eles sabem aguardar o precioso momento do bote. Enquanto aguarda, o caçador morto-vivo estuda com precisão milimétrica os traços da caça: como ela se comporta, seus medos, seus contornos, seu sangue correndo pelas veias, sua pela macia e fresca, pronta para ser mordida. Mas esses homens morcegos ainda possuem o dom da linguagem e usam a palavra como flecha. São sedutores e usam as palavras para distrair e atrair a presa. E esse zumbi com dentes de morcego sorri frases doces para seu alvo. E com muito talento, ele faz com que a caça queira ser a presa em suas mãos. Como um menino sonâmbulo, eles deseja, sonha, projeta e realiza. A caça inclina seu torso e o zumbi morcego lhe toma o corpo. E depois a alma. Agora o corpo e a alma do caçado são do caçador. O sonâmbulo, o morcego, o zumbi: o vampiro. E o corpo caçado vai sendo devorado boca a dentro. A boca se abre e se faz porta para o sangue que entra. E outros caçadores, outros zumbis, outros morcegos famintos ficam com inveja e com vontades e também querem ceder ao impulso que precisa ser saciado.  

Dedicado a Angel Angelus 

segunda-feira, 7 de julho de 2014

Os professores se pudessem comeriam o nosso cu

Os professores nos pedem trabalhos, artigos, teses e relatórios. Mas o que querem mesmo é comer o nosso cu. E comeriam. Se pudessem. Só não comem porque não podem. Não podem poque são velhos. O tempo deles é o do medo e dos prazos. A nosso tempo é da pele e da rapidez. A mão dos professores tentam. E quando tentam pensam em nossas bundas lisas. De vinte e poucos anos. E por mais que tentem, não conseguem. Eles veem nossas pernas nas nossas motos. E nossas tatuagens nos braços. Os professores não conseguem falar a nossa língua. Eles já perderam os dentes. Esqueceram as palavras. Não entendem as gírias. São lentos e nossas motos passam rápido. Eles perdem a chance de passar a mão. Na gente. As mãos dos professores não servem para nada. Já estão sozinhos, os professores. A fama de foda dos professores já acabou. Às vezes no escuro os olhos dos professores brilham. E eles imaginam uma putaria com os alunos de hoje. Com a gente. Com nossas motos e nossas tatuagens. E nossas bundas de vinte e poucos anos, quase nunca metidas. Às vezes nunca mesmo. Ou é mentira. E aí os professores ficam no escuro. Não desistem. Tentam apertar as nossas carnes. Às vezes um de nós os procura. Por bolsa. Por dinheiro, como sempre. Ou fama. Por dinheiro tudo bem. Mas os professores têm medo de um de nós matá-los. Por dinheiro, como sempre. Ou fama. Por dinheiro tudo bem. E alguma maldade. Por isso preferem andar escondidos pelas ruas. Enquanto observam nossas pernas nas motos. E nossas tatuagens nuas. E nossas bundas quase prontas. Com poucos pelos. E depois preferem voltar sozinhos para casa. Sempre sozinhos. No escuro. Com seus olhos que brilham. Pensando em nossas bundas. Olhos brilhantes e sozinhos. Os olhos dos professores não secam. E o desejo no brilho dos olhos podemos notar. Tipo um peixe se debatendo fora d'água. O último debater-se do peixe é a vontade de comer o nosso cu. E os olhos dos professores imaginam os nossos corpos sem escamas. Os professores nos olham e refazem o caminho do desejo. Tendo as mãos como mapas. E as peles pelancas que sobram. Querem voltar a respirar. Ter um último fôlego. Dar um último trago. Querem putarias no escuro. Velhos safados. Querem a mim e a você. Querem comer o nosso cu com nossas motos. Querem beijar e morder nossas peles tatuadas com caveiras. As bundas dos professores não existem mais. Não como o pau. Secaram e sumiram. Se existissem, as bundas dos professores suportariam o mundo inteiro. Só precisariam de um cuspe para ajudar. Seria cuspir e meter. Mas não existem. Se um de nós tentasse. Por muito dinheiro ou desejo. Por dinheiro tudo bem. Não conseguiria. Sob os olhos dos professores, nós estamos. No maior escuro. Os olhos lembram das putarias. E imaginam outras. Com a gente. Comigo e com você. Por cima, das lembranças. A gente de costas e eles por cima. E nunca o contrário. Por cima das motos, gemendo e uivando. Os gritos dos professores na hora da imaginação provam uma coisa. Provam que alguma coisa permanece. Que a putaria permanece. E com força. Permanece pelo menos na imaginação. Que é mais forte que o próprio corpo. Ou quase. Mais pelo menos que a agilidade das mãos e do pau. Porque as mãos e o pau morrem antes da imaginação nos professores. O pau e as mãos se esforçam e se debatem e se atrasam. Quase desistem. Nos professores o pau é mais velho que a imaginação. Sobre nosso cu. E motos. E tatuagens. E vinte e poucos anos. E agora no escuro os professores. Sem os cuspes de suas bocas. Sem a carne de suas línguas. Só com o brilho dos seus olhos. Querem comer o nosso cu virgem, ou quase virgem. Por uma só razão. Porque estão velhos. Só não comem porque não podem. 

quarta-feira, 2 de julho de 2014

Uma das razões que torna difícil esquecer uma pessoa é o fato de que muitas coisas do mundo exterior que  havíamos partilhado com ela, aos quais ela ainda está ligada, insistem em sobreviver. Um café pode fazer lembrar da forma delicada que ela segura a xícara e leva até a boca para beber. Uma ida ao supermercado pode fazer lembrar das bobagens que os dois gostavam de comer juntos. Caminhando pela rua cheia de bares no fim da noite, você pode lembrar ter passado pela mesma rua e pelos mesmos bares, mas com ela ao seu lado. Beber em um bar e olhar para um garçom pode evocar a forma tímida e linda com que ela chama o garçom para pedir alguma coisa. O livro emprestado na estante é um lembrete do gosto em comum por certo tipo de literatura meio alternativo. Certos dias da semana, em que costumavam fazer coisas juntos, fará sempre uma relação agonizante entre passado e presente. Algumas séries assistidas juntos fazem lembrar até a forma que ela ri ou coloca a cabeça no encosto do sofá quando está cansada. 

É o mundo físico que se recusa a deixar esquecer. O mundo exterior não obedece a nossa vontade. Os bares e as ruas, que haviam fornecido o pano de fundo para o começo do sentimento, neles nós projetamos luzes que derivam da pessoa que queremos esquecer. As mesmas ruas, os mesmos lugares, o mesmo céu azul, as mesmas casas, os mesmos carros que passam pela mesma rua, as mesmas lojas vendem as mesmas roupas para praticamente as mesmas pessoas. Toda essa recusa de mudança é um lembrete de que o mundo é qualquer coisa que não se importa com o fato de você estar apaixonado ou não, de se você quer esquecer ou não e de se você está feliz ou não. 

Não podemos mesmo esperar que o mundo exterior, com esses grandes blocos de pedras que formas as ruas da cidade, se importe com o nosso desejo de esquecer e superar. A solução é apenas uma: todo esse cenário que foi forjado em torno de um "nós" tem que voltar a envolver apenas um "eu", mesmo que isso implique uma mudança completa do eu envolvido. 

domingo, 22 de junho de 2014

A Escolinha do Professor Urbano

Urbano era um professor simpaticérrimo, que para ser ascensorista de elevador só faltava mesmo o elevador, de tanto bom dia a toa que ele dava para os alunos que chegavam atrasados na aula. Com ele não tinha tempo ruim, era só risada. Podia faltar alguns dentes na boca, mas não a alegria. E para a falta de dentes ninguém se importava. Primeiro, porque a simpatia compensava. Segundo, porque o mundo acadêmico da Filosofia é meio que um concurso de beleza ao contrário. Terceiro, porque Urbano nunca se importou com mulher e se manteve virgem até a velhice, bem como manda sua vida de padre. A única ocasião social que fazia Urbano se preocupar com a falta de dentes era quando precisava celebrar um casamento: aí ele tapava os buracos pretos com próteses de durepox e misturava com pasta de dente para não ficar com aquele sorriso de dálmata nas fotos do casório. 

Apesar do aspecto um pouco medonho, a simpatia era o suficiente para ser considerado um bom sujeito no meio universitário. Daí veio sua confiança, o combustível para sua alegria. No entanto, foi justamente por ser mais simpático que porteiro de boate chinfrim que foi expulso de sua primeira igreja, quando ainda nem tinha barba, mas já tinha bom dia para dar e vender. Ele ficava tão entusiasmado comandando a missa que não parava de falar no altar mesmo quando as pessoas queriam silêncio para rezar, e por isso ganhou até o apelido de Padre Faustão. 

-- Bom dia, bom dia, a gente só brinca com os amigos, bom dia, hoje vocês aprenderam algo, bom dia, bom dia, piada a gente só faz com quem a gente gosta, bom dia, bom dia, uma macieira em flor, colegas de movimento estudantil, bom dia, bom dia, o Senhor é nosso pastor, amém, bom dia -- e sorria mais contentão que Papai Noel de shopping no Natal. 

Apesar de não ser de propósito, para azucrinar mesmo, quando a expulsão da igreja veio, Urbano ficou deprimido. O que o salvou da depressão foi o convite para dar aulas de filosofia contemporânea em uma universidade. Seu método de ensino era muito simples: se tratava sempre da leitura corrida em voz alta de um texto sobre um autor importante interrompida por alguns comentários engraçadinhos e muito, muito bom humor. 

Assim era o começo de toda aula do professor Urbano: abria a apostila com os textos, procurava o texto da aula, inclinava a cabeça para trás com os óculos na ponta do nariz, alguém entrava na sala atrasado, bom dia, olhava para o o papel de novo, corria os olhos por algumas linhas, surgia outro aluno atrasado, bom dia,  tirava os óculos, dobrava os óculos, botava novamente os óculos, colocava o papel bem próximo da cara, preparava a voz para ler, entrava mais um aluno atrasado, bom dia.

Dessas leituras deficientes em aula, no entanto, Urbano absorveu um conteúdo que para ele (e só para ele) era de cabo a rabo interessante. Afim de dar o seu melhor, e manter a atenção daqueles alunos que prestavam atenção em sua aula (quatro pessoas), anunciou antes que aquele texto era bom, que todos haviam recebido por e-mail e que deveria estar com a leitura em dia. Apresentou uma sinopse vaga, fez parecer que cada palavra importava, e assim conseguiu o clima para finalmente começar a leitura do texto. 

Preparou-se para ler em voz alta, mas de repente se deu conta que não era todo o texto que era relevante. Leu o primeiro parágrafo inteiro e depois já foi pulando o resto: "fenomenologia, tal e tal, tem a epoché, aí vai e vai mais um pouco e tal...". Mas logos em seguida notou que ainda não era bem ali que começava a parte importante, e pulou também esse trecho: "hum, fenômenos na consciência, bibibi bóbobó", enquanto procurava, já constrangido, a passagem importante que queria ler para seus alunos que prestavam atenção (agora três). Porém, já se aproximava da metade do texto e tudo aquilo lá só parecia encheção de linguiça; Seguiu até o final do texto, na esperança de encontrar ao menos um mísero parágrafo que pudesser ter alguma importância, seguindo sempre aquele estilo de leitura em voz alta, e parando sempre para dar um bom dia para quem chegasse atrasado: 

-- Aí vai mais um pouco de epoché nãnãnã... ah sim, é aqui! Ah não é, não... tem a visada, o fenômeno que só existe na consciência não sei de quem... aí tem uma relação com Heidegger lálálá... aí cita as Meditações aqui, outra citação que não sei de onde é aqui (também não entendi o assunto), aí chega no... tchururu... tem mais um pouco...tal... não sei o que...bibibi bóbóbó... bom dia, antes tarde do que nunca... aqui não importa... panânânâ... tá bom, aí vai para o... hum... sei... ainda tem isso... e tal e tal...Aí vem... pula, isso é melhor pular... pula... pula também...blábláblá... segue mais um pouco com o conceito de fenômeno, aquela coisa lá...aí chega bem aqui... ai, ainda não é...continua... segue mais um pouco... bom dia...aí já é Gadamer, volta... volta mais.., volta... aqui... era por aqui...bom dia... bibibi bóbóbó...Eu já falei para vocês que eu e o Ernildo fomos companheiros de movimento estudantil? 

Foi nessa direção, exatamente nessa direção, que toda aquela aula se seguiu. O estilo de dar aula lendo em voz alta algum texto não surgiu ali, nas aulas do profe Urbano, mas não era novidade para os alunos que prestavam atenção (agora só um) que ali ela estava no seu apogeu. Muitos estudantes que passaram pela universidade já haviam presenciados essas leituras, sempre feitas no mesmo estilo, temperadas com a simpatia e o bom humor do professor, mas que pareciam que foram escritas por alguém que dormia, de tão chatas e de tantos bocejos que surgiam na sala. Entre outras razões, isso explicava o baixo número de alunos que prestava atenção na aula do professor Urbano (agora nenhum). 

quinta-feira, 19 de junho de 2014

Poema para a holandesa que ajudei a pedir uma cerveja ontem e foi o meu amor platônico da Copa

aprender tua língua 
para pedir uma cerveja na lima 
não é dominá-la 
é aceitar tuas frases sem tradução
o sentido sem muros e grades 
é entrar no teu ritmo e adivinhar pelo contexto 
o significado das palavras.

falar tua língua não é falar tua língua 
não é pronunciá-la 
entender a tua língua é entender e aceitar você 
com a dedicação serena de uma autodidata 
é escutar tuas frases foras de ordem e dançar com elas
é esquecer que eu tenho uma língua 
é pensar com você e em você:
pensar só dentro da tua língua 

compreender a tua língua é calar a minha língua
e trair a minha língua
é esquecer o vocabulário educado e bem comportado que eu aprendi antes de conhecer a tua língua
é um execício de aceitação só para no final depois de pedir a cerveja poder te dizer:
o prazer foi todo meu 

ser fluente na tua língua 
é participar da totalidade de você 
é reconhecer que é um erro procurar significado em tudo que você diz 
é saber que por trás da tua língua não existe nada 
nem você 
a tua língua é a tua língua e isso é tudo que eu preciso saber

aprender tua língua é avançar na tua língua 
sabendo que nunca eu vou aprender a tua língua 
mas que eu estou aberto a ela 
que eu a escuto e acho bonita 
que ela me emociona e me prende 
e que nela eu me aceito e me deito e durmo 
sem dizer nada 

terça-feira, 10 de junho de 2014

Final de semestre

não publiquei artigos 
não ganhei bolsa
não fiz ainda os trabalhos 
não tirei fotos
não gritei gol 
não fui ao médico 
não me alimentei direito 
não economizei dinheiro
não passei protetor solar 
não passei um final de semana sem beber
não tomei banho de chuva
não dei conselhos
não aceitei conselhos
não tive ex amores pilantras
não errei sempre que tive a chance
não abri um túnel de fuga com dedos encarcerados
não abri fendas e nem interditei avenidas
não rolei até o ralo e adormeci no meio dos ratos
não chorei sentado por nenhuma santa
não passeei em um parquinho
não vivi sem temor e sem o azedume das mentiras aceitas
não fiz a revolução nem por diversão e nem por seriedade
não vi você às vezes na luz da rua sem lucidez
não tive berros beijos bebês e cães e gatos
não tive riscos circos calor e tiros ao alvo
não procurei estrelas no lixo
não reparei em você antes
não disse que sim 
não disse que não 
não conversei 
não sorri
não suprimi minha carência suicida
não te achei com mapa no mundo
não te expliquei que só quem pode aprender tua língua sou eu 
não fingi que não fingi 

será que a tristeza serve de escudo? 

quinta-feira, 29 de maio de 2014

A Morte e o Dasein

Por fora, sua casa nem vale a pena detalhar: se parecia com qualquer outra. Uma cerca, um pátio com jardinzinho, janelas, porta... Por fora ela não tinha mesmo nada de extraordinário. Todas as casas da praia se pareciam. Na parte de dentro, na sala, as paredes estavam cobertas de livros. Os livros ainda se amontoavam sob a mesa e nos cantos da sala. Havia livros em todas as partes. Era uma casa cheia de livros, cheia de presenças, cheia de chamadas ao desconhecido. Foi naquela sala que Dasein havia aprendido a ler, a fumar seus primeiros cigarros e a contemplar o mar pela janela. Gostava de olhar pela janela e imaginar a viagem dos barcos, gostava de pensar que eles visitavam os lugares mais escondidos do mundo. Dasein era um homem honesto e, além disto, o melhor relojoeiro da vila. Com bom cuidador do tempo, ele sabia que um dia ou outro teria que despedir-se desse mundo, mas quase sempre estava tão ocupado consertando seus relógios que não parava para pensar sobre o terrível dia em que morreria. Até certa manhã em que a campainha da porta soou de uma forma peculiar. "Deve ser ela", pensou. E como em um sonho, se levantou da cadeira com seus setenta e seis anos e foi abrir a porta. A única coisa que lamentou era, por não ter nunca se casado, não ter um filho para perpetuar seu nome e sua memória e ainda chorar por sua ausência. "Isso acaba hoje", pensou o velho Dasein, que abriu a porta resignado. 

A primeira coisa que viu, depois de abrir a porta, foi o mar e alguns pescadores, pequenininhos, jogando redes ao calor do sol. No entanto, usando a mão para tapar a luz do sol, pôde perceber a silhueta da velha mulher que estava diante da porta. 

-- Eu sou a Morte -- disse a senhora. 

-- Eu sei, reconheci o seu jeito de tocar a campainha -- concordou o velho relojoeiro. 

A Morte entrou na casa com passos lentos e cansados, e Dasein aproveitou para observá-la com atenção. Ela era muito mais velha do que ele havia pensado. Mais alta também, e tão feia que podemos assegurar que faz de tudo para não ser vista. Parecia muito cansada e aflita. Andava encurvada, como se tivesse todos os anos do mundo nas costas. Fazia lembrar uma velha camponesa apoiada em seu cajado. 

-- Trabalhando muito, senhora? -- perguntou.

-- O de sempre -- respondeu observando a mesa em que o homem montava e desmontava os relógios. 

-- Creio que eu já não tenha tempo para mais nada. A gente nunca sabe no meio de qual relógio a Morte vai nos pegar. Esse daí eu estava quase acabando. 

A velha concordou balançando a cabeça. Lá fora, na praia, se respirava uma brisa muito agradável. "Ela é estranha", pensava Dasein, que depois compreendeu que não podia mais perder um único segundo. Correu e pegou o único casaco que possuía.

-- O que fazes? -- perguntou a Morte. 

-- De noite costuma esfriar e imagino que temos um longo caminho pela frente. 

-- Faça como preferir -- disse a Morte respirando fundo como que para tomar forças. 

-- Pelo menos me deixe terminar esse relógio... 

A Morte concordou e Dasein voltou para suas ocupações decidido a não perder mais um segundo do seu precioso tempo. No começo era difícil concentrar-se com a Morte na sala, mas com o tempo Dasein pensou que a vida com a Morte em casa não era nada diferente de sua vida comum. 

Ele continuou montando e desmontando o seu último relógio. Já há algum tempo que havia descoberto que já não era mais tão habilidoso com suas ferramentas e, com frequência, cometia erros e perdia peças que o faziam desmontar e começar tudo de novo. Porque por mais que Dasein trabalhasse em seus relógios com cuidado e atenção, quase sempre chegava o momento em que alguma peça faltava. Não poucas vezes em sua vida, ele abandonou pequenos relógios de pulso e grandes relógios de parede no meio do seu trabalho. "Por que continuar a medir o tempo se para mim o tempo não existe mais?". 

-- A senhora deve estar cansada. É melhor irmos.

Olharam-se pela primeira vez nos olhos. Agora a velha senhora não parecia mais perplexa e cansada. 

-- Dê-me a mão. Não tenha medo. Eu te ajudarei -- disse a Morte. 

-- Leve-me para onde quiser -- disse Dasein dando sua mão para a Morte. 

Cruzaram a porta, saíram da casa sem se preocupar em fechar a porta. Na beira da praia, pescadores recolhiam suas redes de baixo do sol. A Morte e o Dasein nem ligaram para eles. Andavam juntos, de mãos dadas, apoiando-se um no outro em um lento caminhar. Pareciam dois namorados, tão juntos que iam. Ou dois velhos amigos que não se viam há um tempo mas que agora estavam reunidos ao fim e para sempre. Tudo atrás dos dois sumia: os relógios, a casa, os pescadores, a praia. Ficava um grande vazio. Tudo desaparecia e a Morte e o Dasein se dirigiam a um ponto longe no final do caminho. "Para onde vamos agora?"" Como é o lugar para onde vamos?" "É inútil perguntar", pensava o velho relojoeiro. E ele tinha razão. A morte permitia perguntas, mas não dava respostas. Nenhuma palavra mais ela diria. 



segunda-feira, 28 de abril de 2014

Existe uma piada não muito politicamente correta de um português que vem andando por uma rua, vê uma casca de banana e fala: Ai, Deus, vou ter que cair de novo. Então não adianta ter medo. Afinal de contas, em algum momento tem que acontecer. Não é mesmo? E por que não dizer que muitas vezes nós torcemos para ser o quanto antes? Mas eu não posso falar por você, mosca morta, que tem mais medo do que vontade. Puro clichê, o medo. Estamos sabendo. Não, não olhe para o chão enquanto eu falo com você. Que algum idiota acredite nisso, tudo bem; mas não nós. E enquanto eu falo, você fica olhando para o chão como se tivesse derrubado alguma coisa. Juro que se pudesse ajudar a pegar, eu ajudaria. Mas uma coisa é fingir para os outros, outra coisa é fingir para mim. Outro fracasso, ou melhor: dois. Os dias passando e a certeza inesquecível de que não há em algum lugar um amigo, uma casa, um livro, nem mesmo um vício, que possa te fazer feliz. Mas eu estou falando dos pequenos fracassos. Porque o fracasso total já seria uma alegria. Nada me assusta mais do que uma série de pequenos fracassos. Nenhum grande o bastante para se lamentar, mas todos mostrando que há um padrão que os comanda. Você espera alguém? Não qualquer pessoa, mas uma que antecipe a sua fantasia e mostre que a realidade a supera. Que te dê a totalidade do cosmos. Alguém com seis braços, três olhos e dez tentáculos. Você continua olhando para baixo enquanto eu tento falar com você. Dê no que dê, desde de que dê em algo. Você é minha casca de banana. 

domingo, 27 de abril de 2014

É como se eu tivesse perdido a confiança em praticamente todas as coisas. É como se eu tivesse perdido a capacidade de controlar o meu próprio destino. É como se uma entidade tomasse posse de mim. Ela me faz sorrir, me estimula a agir, me faz dizer coisas e ter esperanças, e depois me atira contra a parede. Eu me sinto com um personagem de uma narrativa de Onetti cujo desfecho eu não posso alterar. Você fez com que eu me arrependesse de em algum momento ter acreditado no livre-arbítrio. 

Eu acho que em algum lugar na psicanálise, está dito que certos tipos neuróticos quando tentam gostar de uma mulher, inconscientemente fazem de tudo para afastá-la. Então é sempre uma escolha que é escolhida porque necessariamente vai fracassar. Eu acho que essa maldição psicanalista caiu sobre mim. 

O problema das maldições é que ser consciente delas não ajuda em nada na hora de evitá-las. Édipo foi avisado pelo Oráculo de que mataria o seu pai e casaria com sua mãe. No entanto, esses avisos não serviram de propósito algum. Édipo sai de casa para evitar a maldição prevista pelo Oráculo. Mas acaba, mesmo assim, casando com sua mãe e matando o seu pai. Ele já sabia dos resultados, conhecia os perigos, mas nada deveria mudar: a maldição é sempre mais forte que a consciência 

Minha maldição psicanalista me impede de preferir relacionamentos que podem ser felizes. Eu só sou capaz de querer quem deve necessariamente se afastar de mim. Vagando assim pela terra até o dia da minha morte. Só que saber disso não mudar nada para mim, e isso porque: a maldição é sempre mais forte que a consciência. 

sábado, 12 de abril de 2014

Josso Aires entrevista um escritor absolutamente insignificante para todas as áreas da literatura brasileira

Programa do Josso Aires. No palco, Josso Aires entrevista o escritor Chico de Jesus. Banda do programa toca o tema de abertura. Josso Aires interrompe a banda e começa a entrevista. 

Josso Aires: Uooooou. Hoje no Programa do Josso Aires vamos conversar com Chico de Jesus, um escritor absolutamente insignificante para todas as áreas da literatura brasileira. Isso é correto, Chico?

Chico de Jesus: É verdade, Josso. Eu sou absolutamente insignificante para todas as áreas da literatura brasileira. Realmente é notável que uma pessoa tão jovem quanto eu já seja tão insignificante para todas as áreas da literatura brasileira. 

Josso Aires: Por exemplo, em qual área da literatura brasileira você é absolutamente insignificante? 

Chico de Jesus: Poesia. O meu trabalho na poesia é absolutamente insignificante para a poesia brasileira. 

Josso Aires: Ora, então você é poeta, Chico? 

Chico de Jesus: Claro que sou, Josso. Tenho um bigode e cabelo bagunçado. 

Josso Aires: Mas para ser poeta basta ter um bigode e cabelo bagunçado? 

Chico de Jesus: Não, claro que não. Essa é uma visão bastante reducionista do que é ser poeta. Além do bigode e do cabelo bagunçado é preciso descuidar sistematicamente da higiene pessoal. E essa é outra característica que eu tenho. 

Josso Aires (fazendo cara de nojo): Eu já tinha reparado. Então tenho que te perguntar: que diabos de cheiro é esse, Chico?  Como é que se consegue esse fedor tão singular? 

Chico de Jesus: Ora, Josso, imagine que você jogou uma hora de bola sem parar. Há suores que escorrem pelo peito e ficam alojados na zona pélvica, e assim convivem um pouco com o fedor do saco (é fundamental trocar poucas vezes de cueca). Por outro lado há suores que escorrem pelas costas, alimenta-se com o fedor do cu e se juntam com o outro suor, formando um cheiro só. Então o meu fedor é justamente uma junção desses dois suores. 

Josso Aires: Portanto, recapitulando: há dois suores, há saco e há o cu. 

Chico de Jesus: Perfeitamente. 

Josso Aires: Mas permita-me dizer, Chico, que eu noto aí também um pouquinho de chulé. 

Chico de Jesus: Esse é o meu diferencial. Todos os poetas têm um diferencial e esse é o meu. É impressionante que eu tão novo já feda dessa maneira. 

Josso Aires: É impressionante mesmo. Mas, Chico, como foi a recepção de seu primeiro livro de poemas? 

Chico de Jesus: Alguém já escreveu, Josso, que se trata do melhor livro de poemas brasileiro de todos os tempos. 

Josso Aires:  É mesmo? E quem escreveu isso? 

Chico de Jesus: Fui eu mesmo, ontem. Ontem eu postei isso no meu facebook e ainda terminei com um emoticon sorrindo, para ficar mais simpático. 

Josso Aires: Chico, você se importa de declamar um dos seus poemas para a gente aqui no palco? 

Chico de Jesus: De forma alguma, seu Josso. 

Chico de Jesus vai até o centro do palco, A iluminação diminui e toca uma música calma de fundo. 

Chico de Jesus: Esse poema eu escrevi em razão da trágica morte de minha mãe em um acidente de trânsito. Ele se chama "Minha mãe". E é assim: 
Oh, 
Minha mãe. 

Chico de Jesus volta a sentar no banco de entrevistados. Josso Aires faz cara de quem não entendeu. Alguém tenta puxar uma salva de palmas da platéia, mas que ninguém acompanha. 

Josso Aires: Este é seu poema? Ele consiste em duas palavras? 

Chico de Jesus: Bem, Josso, se a gente contar a declamação "oh" no começo são três palavras. É impressionante que uma pessoa tão nova possa escolher tão bem as palavras. 

Josso Aires: Você poderia declamar outros de seus poemas?

Chico de Jesus: Mas é claro! Tem um que eu particularmente gosto muito e se chama "Meu tio". 

Chico de Jesus vai novamente para o centro do palco. A luz baixa e começa a música de fundo. 

Chico de Jesus: 
Oh, 
Meu tio. 

Josso Aires: Tenta mais um, eu quero ver até onde isso vai. 

Chico de Jesus: Certo, Josso. Agora vou declamar meu poema que se chama "Meu primo que eu nunca vejo mas que mesmo assim aparece sem ser convidado no Natal e bebe e come de graça a noite toda". 

Oh
Meu primo
que eu nunca vejo mas que mesmo assim aparece no Natal sem ser convidado e bebe e come de graça a noite toda.

Chico de Jesus volta para seu lugar. 

Josso Aires: Realmente é muito tocante o seu dom com as palavras. Mas vamos falar de outra área da literatura brasileira em que você é absolutamente insignificante. Você também é jornalista, certo? 

Chico de Jesus: Não só sou jornalista como sou o jornalista mais premiado entre aqueles que nasceram em setembro de 85. 

Josso Aires: Como? 

Chico de Jesus: Eu sou o jornalista mais premiado entre aqueles que nasceram em setembro de 85. Tenho dois prêmios para as reportagens que fazia para o jornalzinho da escola e um segundo lugar em uma competição de comer tortas. Ainda tenho uma menção honrosa em um campeonato de construir castelinhos na areia da praia. É realmente impressionante que alguém tão jovem quanto eu já tenha sido tão premiado.

Josso Aires: Como jornalista, qual a sua opinião sobre o seu trabalho como poeta? 

Chico de Jesus: Eu, como o jornalista mais premiado nascido em setembro de 85, acho o meu trabalho como poeta uma bosta. 

Josso Aires: Certo, Chico. Mas além de poesia e jornalismo, qual outra área da literatura brasileira você é absolutamente insignificante? 

Chico de Jesus: Bem, Josso, eu creio que posso afirmar com certa segurança que eu também sou absolutamente insignificante para o romance. Quando eu escrever meu terceiro romance, minha consagração... 

Josso Aires (interrompendo): Sem querer interromper mas já interrompendo: não sabia que você já escreveu dois romances. 

Chico de Jesus: Não, não. Nunca escrevi nenhum. No entanto isso não me impede de afirmar que o terceiro será a minha consagração. Esse enunciado possui condição de verdade. Meu primeiro romance fará um relativo sucesso entre o público, mas será massacrado pela crítica (que vai me julgar superficial demais). Já o segundo será adorado pela crítica mas ignorado pelo público (que irá me achar pretensioso demais). Já o terceiro irá agradar tanto a crítica quanto o público e assim irá me consagrar. Mas você pode ter certeza que apesar disso tudo serão livros absolutamente insignificantes para a literatura brasileira. 

Josso Aires: E no que mais você é absolutamente insignificante para a literatura brasileira? 


Chico de Jesus: Sem nenhuma dúvida eu sou absolutamente insignificante também para a escrita humorística brasileira. 

Josso Aires: Fale mais sobre isso. 

Chico de Jesus: Olha, Josso, eu criei um estilo completamente novo para a escrita humorística que é a escrita humorística que não é engraçada de forma alguma. Antigamente a gente lia um conto de humor e ria. Mas nos meus contos isso não acontece. Eu mesmo já estive em velórios bem mais engraçados do que os meus contos, incluindo o da minha mãe. O que eu escrevo realmente não tem graça nenhuma, nenhuma mesmo. 

Josso Aires: Chico, o papo tá muito bom, mas eu tenho tempo apenas para mais uma questão. Destaca-se muito essa sua expressão facial. Você poderia explicar o que ela significa? 

Chico de Jesus: É uma boa pergunta, Josso. Primeiro eu gostaria de dizer que eu sou a pessoa mais jovem a ter essa expressão facial. E ela significa (câmera foca no rosto do escritor) : aqui nos olhos, um pouco de preocupação, em razão da futilidade da vida humana nas grandes cidades; aqui no canto da boca tem um toque de ironia e cinismo, em razão do meu pessimismo em relação ao futuro humano; e aqui na zona do maxilar é tudo zoeira mesmo porque eu to pouco me fodendo para o mundo e para as pessoas. Isso para que, quando eu fizer uma piada em alguma mesa de bar, quando largar um trocadilho espirituoso, como quem não quer nada, eu mostrar uma ironia, mas ponderado pela preocupação. E isso por que o escritor sabe que o mundo está cheio de problemas, no entanto ele não pode perder seu jeito espirituoso 

Josso Aires: Hum, talvez eu consiga também ter esse semblante. Vou tentar, diga como me saio. 

Câmera foca agora no rosto de Josso Aires, que começa a fazer caretas bizarras. 

Chico de Jesus: O segredo está no franzir da testa, Josso. 

Josso Aires: Não sei se estou conseguindo. Estou expressando angústia? 

Chico de Jesus: Apenas um pouco, Josso. 

Josso Aires: Sabe o que está me acontecendo? Eu realmente sinto aqui nos olhos preocupação porque o mundo está difícil, mas por outro lado eu não consigo ficar ao mesmo tempo espirituoso. 

Chico de Jesus: Pois é, precisa da ironia, só preocupação não basta. 

Josso Aires: De qualquer forma não temos mais tempo. Eu conversei hoje com Chico de Jesus, um escritor absolutamente insignificante para todas as áreas da literatura brasileira. 

Platéia interrompe fazendo "aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaah" 

Josso Aires: Eu também gostei, ele realmente é insignificante para todas as áreas da literatura brasileira. Depos do intervalo iremos conversar com Jan Santiago, o doutarando em filosofia brasileiro que decorou mais termos fenomenológicos desnecessários em alemão. Até mais e um beijo do gordo, uooooooooou. 

Banda volta a tocar. Sobe a vinheta. Final do bloco.