domingo, 22 de junho de 2014

A Escolinha do Professor Urbano

Urbano era um professor simpaticérrimo, que para ser ascensorista de elevador só faltava mesmo o elevador, de tanto bom dia a toa que ele dava para os alunos que chegavam atrasados na aula. Com ele não tinha tempo ruim, era só risada. Podia faltar alguns dentes na boca, mas não a alegria. E para a falta de dentes ninguém se importava. Primeiro, porque a simpatia compensava. Segundo, porque o mundo acadêmico da Filosofia é meio que um concurso de beleza ao contrário. Terceiro, porque Urbano nunca se importou com mulher e se manteve virgem até a velhice, bem como manda sua vida de padre. A única ocasião social que fazia Urbano se preocupar com a falta de dentes era quando precisava celebrar um casamento: aí ele tapava os buracos pretos com próteses de durepox e misturava com pasta de dente para não ficar com aquele sorriso de dálmata nas fotos do casório. 

Apesar do aspecto um pouco medonho, a simpatia era o suficiente para ser considerado um bom sujeito no meio universitário. Daí veio sua confiança, o combustível para sua alegria. No entanto, foi justamente por ser mais simpático que porteiro de boate chinfrim que foi expulso de sua primeira igreja, quando ainda nem tinha barba, mas já tinha bom dia para dar e vender. Ele ficava tão entusiasmado comandando a missa que não parava de falar no altar mesmo quando as pessoas queriam silêncio para rezar, e por isso ganhou até o apelido de Padre Faustão. 

-- Bom dia, bom dia, a gente só brinca com os amigos, bom dia, hoje vocês aprenderam algo, bom dia, bom dia, piada a gente só faz com quem a gente gosta, bom dia, bom dia, uma macieira em flor, colegas de movimento estudantil, bom dia, bom dia, o Senhor é nosso pastor, amém, bom dia -- e sorria mais contentão que Papai Noel de shopping no Natal. 

Apesar de não ser de propósito, para azucrinar mesmo, quando a expulsão da igreja veio, Urbano ficou deprimido. O que o salvou da depressão foi o convite para dar aulas de filosofia contemporânea em uma universidade. Seu método de ensino era muito simples: se tratava sempre da leitura corrida em voz alta de um texto sobre um autor importante interrompida por alguns comentários engraçadinhos e muito, muito bom humor. 

Assim era o começo de toda aula do professor Urbano: abria a apostila com os textos, procurava o texto da aula, inclinava a cabeça para trás com os óculos na ponta do nariz, alguém entrava na sala atrasado, bom dia, olhava para o o papel de novo, corria os olhos por algumas linhas, surgia outro aluno atrasado, bom dia,  tirava os óculos, dobrava os óculos, botava novamente os óculos, colocava o papel bem próximo da cara, preparava a voz para ler, entrava mais um aluno atrasado, bom dia.

Dessas leituras deficientes em aula, no entanto, Urbano absorveu um conteúdo que para ele (e só para ele) era de cabo a rabo interessante. Afim de dar o seu melhor, e manter a atenção daqueles alunos que prestavam atenção em sua aula (quatro pessoas), anunciou antes que aquele texto era bom, que todos haviam recebido por e-mail e que deveria estar com a leitura em dia. Apresentou uma sinopse vaga, fez parecer que cada palavra importava, e assim conseguiu o clima para finalmente começar a leitura do texto. 

Preparou-se para ler em voz alta, mas de repente se deu conta que não era todo o texto que era relevante. Leu o primeiro parágrafo inteiro e depois já foi pulando o resto: "fenomenologia, tal e tal, tem a epoché, aí vai e vai mais um pouco e tal...". Mas logos em seguida notou que ainda não era bem ali que começava a parte importante, e pulou também esse trecho: "hum, fenômenos na consciência, bibibi bóbobó", enquanto procurava, já constrangido, a passagem importante que queria ler para seus alunos que prestavam atenção (agora três). Porém, já se aproximava da metade do texto e tudo aquilo lá só parecia encheção de linguiça; Seguiu até o final do texto, na esperança de encontrar ao menos um mísero parágrafo que pudesser ter alguma importância, seguindo sempre aquele estilo de leitura em voz alta, e parando sempre para dar um bom dia para quem chegasse atrasado: 

-- Aí vai mais um pouco de epoché nãnãnã... ah sim, é aqui! Ah não é, não... tem a visada, o fenômeno que só existe na consciência não sei de quem... aí tem uma relação com Heidegger lálálá... aí cita as Meditações aqui, outra citação que não sei de onde é aqui (também não entendi o assunto), aí chega no... tchururu... tem mais um pouco...tal... não sei o que...bibibi bóbóbó... bom dia, antes tarde do que nunca... aqui não importa... panânânâ... tá bom, aí vai para o... hum... sei... ainda tem isso... e tal e tal...Aí vem... pula, isso é melhor pular... pula... pula também...blábláblá... segue mais um pouco com o conceito de fenômeno, aquela coisa lá...aí chega bem aqui... ai, ainda não é...continua... segue mais um pouco... bom dia...aí já é Gadamer, volta... volta mais.., volta... aqui... era por aqui...bom dia... bibibi bóbóbó...Eu já falei para vocês que eu e o Ernildo fomos companheiros de movimento estudantil? 

Foi nessa direção, exatamente nessa direção, que toda aquela aula se seguiu. O estilo de dar aula lendo em voz alta algum texto não surgiu ali, nas aulas do profe Urbano, mas não era novidade para os alunos que prestavam atenção (agora só um) que ali ela estava no seu apogeu. Muitos estudantes que passaram pela universidade já haviam presenciados essas leituras, sempre feitas no mesmo estilo, temperadas com a simpatia e o bom humor do professor, mas que pareciam que foram escritas por alguém que dormia, de tão chatas e de tantos bocejos que surgiam na sala. Entre outras razões, isso explicava o baixo número de alunos que prestava atenção na aula do professor Urbano (agora nenhum). 

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