Todas as pessoas que nasciam naquela pequena aldeia tinham uma peculiaridade: elas nasciam sem rosto. Lá se aprendia logo que desde os primeiros momentos de vida cada ato e pensamento da criança seriam um influenciador direto de todo traço e detalhe que surgiria em sua face, a princípio inexpressiva. O susto do nascimento já poderia dar para cada um os rasgos entre as sobrancelhas. A falta de ar durante uma noite de asma poderia dar uma arrebitadinha no nariz. As canções de ninar da mamãe, que enchem a casa de amor, poderiam dar a alguém a concavidade dos lábios, para desde sempre ensaiar longos sorrisos, ainda que no começo faltem os dentes. Não se sabia por que, diferentemente de todo mundo na aldeia, Luna -- que era conhecida na escola como "A menina sem rosto" ou apenas "Luna sem rosto" -- não conseguia desenvolver os traços e os desenhos de seu rosto.
Mãe Canchinha, a velha benzedeira da aldeia e que costumava profetizar alguns acontecimentos enquanto balançava um sino velho com um pêndulo enferrujado, dizia que Luna não tinha um rosto porque não tinha sentimentos. Essa menina não é do céu e nem do inferno, ela dizia e balançava o sino (blem blem). Essa menina não tem um lado, ela é do meio, ela não faz nada, ela não fala nada, ela não sente nada, ela não é nada, ela é o próprio nada (blem blem blem) -- completava. No entanto havia também quem acreditasse que Luna tinha, sim, sentimentos, só que lhe faltava um rosto para poder expressá-los. Na verdade era impossível saber o que tinha faltado primeiro para a menina que não tinha rosto.
Os pais de Luna fizeram tudo o que podiam. Encheram a menina de mimos e amor, de canetinha de cor e de vestidinhos de flor. Porém nada fazia surgir em Luna seu primeiro sorriso, seu primeiro choro, seu primeiro berro ou sua primeira dor. Nada do que faziam parecia funcionar e ajudar a tirar a menina que não tinha rosto da inércia do não-sentir e do não-ser.
Assim ela cresceu: não gostava e nem desgostava de seus pais e de seus irmãos, não ouvia música, não costumava ler, não se interessava pelos meninos. anulava seu voto nas eleições da aldeia, usava sempre frases neutras nas mais acaloradas discussões e não entendia como as pessoas podiam se apaixonar. Imune a qualquer prazer ou frustração, uma das únicas opiniões sustentadas por Luna era de que não valia a pena ter uma boca, para dar todas as gargalhadas que alguém poderia dar em uma vida, e nem olhos, para tantas quantas fossem as lágrimas que sempre se intercalam com as alegrias.
-- Nem tudo está perdido -- dizia Mãe Canchinha -- Luna, a menina sem rosto, ainda pode vir a ser uma grande filósofa analítica.
Blem blem blem.
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