sexta-feira, 10 de outubro de 2014

A Gata Dasein

A Gata Dasein, a gata recém castrada, voltou sonolenta do veterinário, assim como o seu dono, que acordara de uma noite que parecia não ter fim. Fazia muito tempo que a realidade dos dias era assim para ele: uma espera pela chegada das horas livres, dos feriados, das noites no bar, dos finais de semana e das férias. Porém, apesar de a importância dessas horas livres na sua vida e de conviver com a aflição de ter que esperar por elas, elas nunca eram suficientes para preencher no seu peito o vazio deixado pelas outras horas. O dono da Gata Dasein se sentia culpado por isso. Seria possível injetar a fome de viver nas entranhas? Poderia criar um comprimido que prolongasse o sentimento bom das horas livres até o restante do tempo? Como ele poderia reverter a efemeridade que era a sua vida? Ainda sedada da anestesia da castração, a Gata Dasein riu, juro que ela riu um riso debochado, um riso de quem tem as respostas que seu dono procura. 

Procura e nunca encontra. Aliás, encontrar nunca foi o forte do dono da Gata Dasein. Não bastavam apenas as chaves que ele nunca encontrava quando precisava sair de casa e estava atrasado, ou os óculos que perdia toda manhã depois de acordar, não encontrava também a ponta do lacre de abrir a embalagem da bolachinha recheada, não encontrava na web o livro que queria baixar, não encontrava seu casaquinho xadrez preferido quando se arrumava para ir para a aula, não encontrava sua vocação, não encontrava um amor ou um motivo para continuar. E como se procurar tudo isso e não encontrar não fosse suficiente, o dono da Gata Dasein se sentia culpado por não lembrar onde deixou as chaves, por não saber em que canto jogou o casaquinho xadrez preferido que deveria estar no cabide ao lado da porta do quarto. Sentia-se culpado pela sua vida de estudante que apesar de boa parecia nunca dar retorno e com seu irmão e companheiro de apê, que se esforçava tanto para ser o melhor que podia. Era como se tudo o que devesse ser estivesse ali com ele o tempo todo, como se as coisas que tinha fossem quase tudo o que poderia querer. No entanto sempre faltava alguma coisa. Era como se acordasse de manhã e estivesse procurando seus óculos para ver perto, quando o que precisava mesmo era encontrar óculos para ver de longe. Afinal, que sentido tem ver tudo no detalhe?  Talvez a vida deva parecer boa apenas quando vista de longe, ele pensava. 

Esse tipo de culpa dominava o dono da Gata Dasein, a gata recém castrada e ainda grogue de anestesia. Parecia que nada no mundo era suficiente para alegrá-lo de uma vez por todas. Vivia perguntando-se  por que não se contentava com o pouco ou se estava querendo demais. A resposta para essa questão, assim como a ponta do lacre de abrir a embalagem da bolachinha recheada e seu casaquinho xadrez preferido, ele nunca encontrava. Só quem parecia encontrar era a Gata Dasein, que, um pouco zonza, observava-o comendo sua bolachinha com café e depois procurando o casaquinho xadrez por todo o apartamento, enquanto saia para a aula marcando pelo celular de sair para beber com alguma pessoa mais tarde. A Gata Dasein, cambaleando sem rumo pelo apartamento, sabia muito bem que nenhum quase iria substituir o todo que faltava para seu dono, ela sabia também que a sensação de ser quase feliz não chega nem perto da sensação de uma felicidade plena e real. 

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