sábado, 23 de agosto de 2014

Quando eu era criança, alguém cagava no meio da rua da minha casa. Ninguém sabia quem era o filho da puta que cagava no meio da rua que a gente morava. Mas o cara cagava (quer dizer, eu achava que era um cara, tipo, não queria imaginar uma mina cagando no meio da minha rua). O foda era que nem dava para botar um guardinha para cuidar da rua e descobrir quem era porque o cagão não escolhia dia e nem turno. Não seguia uma ordem, era meio no improviso. Quando a gente menos esperava, ele sentava o rabo no meio da rua e cagava para desespero geral da nação. Talvez nem fosse planejado, talvez fosse apenas algo que dava vontade de fazer na hora, assim de repente. Meu pai dizia que era brincadeira de moleque, mas, sei lá, eu achava que aquele cagalhão parecia mais trabalho de um elefante do que de uma criança. E criança, apesar de tudo, não é tão safada assim. Ela não ia sujar tudo só de sacanagem. O cagão tinha que ser um adulto frio e calculista e com um intestino domado. 

O negócio é que chegou uma hora que tava começando a incomodar. No começo é engraçado, mas depois fica chato. Sério, que tipo de pessoa caga no meio da rua? Lá, no meio da rua, alguém cagava lá. O pior é que merda não some assim do nada. Quando alguém caga no meio da rua, alguém precisa ir lá e limpar. Fora que fede, né. Na rua em que eu cresci, todo mundo se conhecia, bem interior mesmo. As crianças brincavam nas calçadas e as tias ficavam nas janelas fofocando. Ou seja, cagar nessa rua não era como cagar numa rua deserta, ou numa rua tão movimentada que qualquer um poderia cagar e os dejetos sumiriam em segundos, como acontece com os dejetos de cavalos. Era a minha pacata rua, cara, e alguém tava cagando lá. Cagar na minha rua era quase como cagar na sala de estar do Big Brother Brasil. Ninguém poderia escapar. Mas esse cagão escapava. 

A janela da casa dos meus pais ficava bem de frente para a rua. Isso quer dizer que a sujeira, quando aparecia, ficava bem na nossa cara. Parecia jornal sendo entregue bem na entrada da casa. Um jornal que só tinha notícia ruim. Só que não era jornal, era uma bosta. Não dava nem pra se preparar psicologicamente, porque às vezes acontecia uma vez por semana, às vezes duas e, quando o cagão tava inspirado, umas três. A gente que morava na rua já tava começando a se cansar. 

Na minha casa moravam eu, meus irmãos e meus pais. Durante um tempo, minha vó morou com a gente. Nem lembro bem o por que, mas ela tava lá junto. Daí que minha vó nem podia andar direito, né, porque, tipo, ela é velha. Velho é foda. Velho não vem com manual e a gente tem que ir levando. Velho não funciona direito. Tem que pegar no tranco. Minha vó não se movia quase nada, só o suficiente para sobreviver. Coisa de gente velha. 

Acontece que a gente tinha um computador em casa. Ninguém mais na família tinha um computador com internet. Só a gente. E minha mãe teve a genial ideia de me colocar ensinando a velha a  fuçar na internet. Claro, como se isso fosse mudar a vida dela aos trezentos anos. A pessoa é incapaz de controlar a própria bexiga mas tem que ter um e-mail. Pensem, se naquela época já era foda ensinar um adulto saudável a logar na internet, imaginem como era ensinar uma pessoa que nem sabia em que ano ela tava. Foi foda. Eu queria me matar. Já não bastava um cara cagando na minha rua, ainda tinha que explicar para minha vó como funcionava a internet. 

Como eu não tinha muita paciência, ensinei foi é porra nenhuma. Eu fiz o que qualquer ser humano normal faria: entrei no chat do Terra, na sala de idosos, e falei: conversa cas pessoa, vó. Eu pensei: ela não tem nada para fazer, pelo menos no chat ela pode conversar com os outros velhos e se pá encontra um amigo da idade dela. 

Com isso eu tinha resolvido um dos meus problemas. Faltava o mais sério. A cagada na rua continuava. E parece que estava acontecendo mais forte do que nunca. O inferno de tudo foi quando o individuo começou a escolher alvos. Era um trabalho sinistro e minucioso, mas cada morador tinha a "sua hora". Num dia, largou o barrão na porta da primeira casa, no outro dia, na segunda, e assim por diante, uma vez por semana, subindo a rua e cagando. Não adiantava fiscalizar, porque era um dia randômico da semana. A única certeza era a de que se semana passada ele tinha cagado na frente da casa ao lado da sua, agora a casa escolhida seria a sua. Era desesperador ver que o cagão estava se aproximando cada semana mais.  

Eu sabia que a nossa vez iria chegar. Com a certeza, veio a coragem. Os vizinhos poderiam ser covardes, mas não eu. Eu não deixaria um vagabundo qualquer cagar na porta da minha casa. E como ficava o tempo todo em casa de bobeira, a minha mãe já tinha me manda ficar de olho e ainda tinha me dado o aviso: se cagarem aqui, quem é limpa é tu. Foda, a merda ia acabar sobrando pra mim. Porém bati no peito e respondi: não vou limpar nada porque nessa casa cuzão nenhum vai cagar, 

Parceiro, a parada tinha virado pessoal. Montei uma escala de vigia, fiz gráficos, estudei os outros casos, tentei entrar na mente do cagão. Cheguei a cagar de porta aberta com a casa cheia de visita porque queria sentir o que ele sentia. Eu queria pensar o que o cagão pensava. Decidi passar os dias e as noites na janela, cuidado a rua. Era cansativo, mas iria pegar esse cu frouxo de qualquer maneira. Meu único foco era o cagão. Não me alimentava mais, faltava a escola, não conversava mais com os amigos. Minha única ligação com esse mundo era minha vó senil digitando com um dedo só no computador da sala. Era bom porque ela não me atrapalhava e ainda me fazia companhia. A gente conversava sobre as coisas e ela parecia entender minha obsessão com o cagão. Por um momento cheguei até a amar aquela velha. Brinks, nem chegou a tanto. 

Num certo dia, lá pelas duas da madrugada, ela me disse que tava com sede. Aí foi aquela coisa de velho. Não dá pra levantar pra nada, né. Fui buscar a água e quando voltei entreguei o copo para a vó. A velha tava toda felizona batendo papo com as pessoas na sala do chat. Voltei para meu posto de observação na janela e bateu aquele ventinho gostoso da madrugada. Só que, puta que pariu, veio junto com o vento um baita cheiro de merda. CARALHO, CHEIRO DE MERDA, MERDA, CHEIRO DE MERDA, CAGARAM ALI NA PORTA. Onde foi que errei?, eu me perguntava. Não estava acreditando. Havia sido derrotado, humilhado pelo cagão. Abri a porta da casa e confirmei: o barrão tava lá. 

Falei com minha vó e ela disse que não havia escutado nada. Velha inútil, pensei. Agora teria que limpar a bosta toda sozinho. Eu estava puto, puto mesmo. Queria matar a pessoa cagona. E enquanto isso minha vó irritante pedindo mais água. Perdi a paciência e gritei: CALMA, VÓ, JÁ VAI, CAGARAM NA NOSSA PORTA, QUE MERDA, VAI LÁ VER AQUELA BOSTA. Ela que fosse encarar o troço para ver se caia na real. Velha escrota. E ela foi. Quando ela foi, eu,  puto da vida, fui usar o computador para contar para algum amigo que a tragédia estava feita. Minha vó tinha deixado a aba da sala do chat, que ela passava o tempo todos os dias, aberta. O que li sem querer destruiu toda a fé na humanidade que ainda existia em mim. Não podia ser verdade. Só podia ser sacanagem: 

Dona Gema Pitareli fala para todos: 
CAGUEI NA RUA DE NOVO HAUAHUAHAUAHAUHAUA

Toda velha é filha da puta. 


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