sexta-feira, 27 de dezembro de 2019

uma analítica existencial do primeiro encontro ou jéssica e uma beleza fenomenológica

a tua forma de ser no mundo é certa impressão de fugacidade, um caráter improvável, fugitivo, como se estivesse sempre prestes a voar. é por isso que você impele para cima, por isso que você não está inteiramente presente: você não pesa de todo sobre o chão, tem os pés leves, frequentemente parece assustada, como se fosse sair fugindo ao menor som nas folhagens -- não que seja covarde, pelo contrário, é que se atreve a ir longe, sempre longe demais. dessa forma, teu ser, ao invés de manifestar-se abertamente, está oculto, escondido, negado, fechado em um tipo de interioridade. essa é a consequência mais radical de seu modo de ser: não ser coisa definida, ser um fenômeno que está sempre acontecendo, que consiste em um dinamismo e fugacidade. descrever esse modo de ser vai além da companhia no sentido de sairmos juntos: é uma constante interpretação.  

as linhas delicadas do teu rosto desenham uma ruptura: tu está sempre um pouco atrás de teu próprio rosto.  é o que mais propriamente chamo de um rosto bonito: não o que de imediado agrada por suas formas e que se consegue ver integralmente de uma única vez, mas o que se precisa continuar olhando, interminavelmente. é um tipo de beleza que se dilata e se afasta, elástica, para o futuro, e eu sentia que precisava estar olhando para esse rosto, indefinidamente, a noite inteira. 

terça-feira, 5 de novembro de 2019

estava olhando pela janela a rua lá fora e pensando no meu gosto por autores marginais. naqueles outsiders, deslocados, que pouco se fala numa aula de história da filosofia. naqueles que quando falamos a voz sai com dificuldade. que quando tentamos escrever sobre, as letrinhas caem como bolinhas de vidro e se quebram no chão. naqueles consumidos pela aporia mesmo. nos que não se encaixam no cânone, porque a vida não permite. não há tempo e um sistema filosófico é nada. 

lembro da melancolia de benjamin. nas frases quase no limite do sentido de derrida. de kierkegaard, cuja filosofia se confunde irremediavelmente com sua biografia de revolta e desespero. heidegger disse uma vez para sua mulher, falando sobre si mesmo: a vocação para uma tarefa é também uma condenação à solidão. todos queimaram a vida. todos consumidos pela aflição e pela angústia. 

defendi em minha tese de que há laços de família entre esses filósofos que escreveram à margem da história da filosofia. e deve haver, pois de certa forma se parecem. há laços entre aqueles que observam de longe o jogo da filosofia oficial. que espreitam pelas frestas das janelas tentando entender o mundo lá fora. os que olham as pessoas passando, os carros parados nos sinais fechados e enxergam muito mais.

o tecido da história, assim nos ensinam, foi composto fio por fio de forma ordenada. mas as filosofias propostas por esses autores são feitas de pedaços informes, tão movediças quanto a areia das dunas. foi preciso quebrar o ser. fragmentá-lo. e mesmo assim não sobrou nada. nem um pedaço sequer. o que se buscava era tão profundo que ninguém, nem mesmo eles, ousarem chegar perto. a única coisa que pode aproximar desse mistério, e talvez consolar ou suavizar, é um jeito (novo) de escrever. só assim se tem alguma fé ou confiança. porque torna um pouco claro e luminoso o que era ambíguo e obscuro. 

há sim laços entre aqueles que tentam vislumbrar o fundo dos abismos. como se todos viessem da mesma noite em que o silêncio preenche todos os espaços, deixando submersas em tristezas a aporias todas as coisas em sua volta. 

há laços. 

e apesar disso, são sempre tão sozinhos. 

terça-feira, 29 de outubro de 2019

para uma passante (da cb)

uma mulher fuma. não consigo compreender seu estilo. tem uma certa obscuridade, como um atraso no tempo. como se tivesse saído de algum bar punk do final dos anos oitenta. tem o cabelo pintado de laranja. seu penteado é tão artificial que parece ser uma peruca. não me olha. somente fuma e de uma maneira muito lenta. há algo em sua energia que me captura. transmite uma distância, um descompromisso com o cotidiano, como se estivesse buscando um compromisso maior com outras dimensões da existência. 

a mulher seguiu sem falar e seguiu fumando olhando para a rua. até que lentamente começou a desviar seus olhos para mim. sinto seu olhar em mim. creio que pela primeira vez na noite me dou conta que tenho um corpo. 

segunda-feira, 23 de setembro de 2019

longe

não há o que se fazer quando longe não é um lugar. não há como chamar um uber, pegar um táxi, comprar uma passagem. nada pode ser feito quando o longe é por dentro, um não ser, uma coisa qualquer que nunca chega. por mais que se siga em frente a vida toda, longe é uma brecha que não se fecha. às vezes é um escuro que assusta, outras é uma claridade que cega. 

longe é quando as coisas vão morrendo, diante dos nossos olhos, sem que possamos salvá-las. longe é quando as coisas partem, quando se vão lentamente, sem como, sem quê. longe é quando não perdermos, mas as coisas que perdem a nós. 

nessa mônada que somos, cada um sabe o que arrasta por dentro. longe, às vezes, é bem onde a gente tá. 

gato

o gato que me olha
é um gato que tem olhos
e que me percebe
como eu o perceberia

é assim que eu olho
para o gato que me olha

sexta-feira, 13 de setembro de 2019

sapatos (ari)

ali, por debaixo da mesa do restaurante, fiquei olhando os sapatos soltos do pé como se estivessem no chão da sala de casa. a roupa que ela vestia. a camisa lisa de manga longa, tão a cara dela, tão bem ajeitadinha. a bolsa, imitando o coro de crocodilo, com o fecho dourado, como se ela tivesse ficado em dúvida, na noite anterior, se ela combinava bem com a roupa. mas os sapatos, especialmente eles. pequenos, sem salto, baixos, escuros. ali, um do lado do outro, fora dos pés. isso me fez pensar como tudo aquilo que eu via era ela viva, e em como eu me sentia também vivo próximo daqueles sapatos tirados daquela forma e de como sempre vê-los ali, atirados, e nunca guardados dentro de algum armário.  

segunda-feira, 26 de agosto de 2019

estranho

o que te desassossega?
o que te perturba até a alma?
o que bate a tua porta?
o que atravessa teus dias atravessa a chuva atravessa a tua vida
sem nenhum traço nenhuma sombra?
o estranho que te diz pare de sonhar menino
o mundo é perigoso é cego é surdo?
quem é que grita teu nome da rua
e não entra mesmo com a porta aberta?

não é aquele que tu também desassossega?
aquele que tu perturba até a alma?
aquele por quem tu bate a porta?
não é aquele cujos dias tu atravessa
sem deixar traço sem deixar sombra?
o estranho ao qual tu diz
pare de sonhar menino?
o nome que tu grita da rua
sem entrar pela porta aberta?

sexta-feira, 2 de agosto de 2019

janaina

ela é um labirinto escuro. o caos que se mostra é mais ou menos como um desenho perdido de um mapa -- de um lugar inencontrável. mapa. no mapa, nada de bairros ruas estradas rotas e caminhos. nada. nem qualquer sinal para sair do labirinto. no mapa apenas brilham faróis. um emaranhado de luzes intermitentes e um intricado de pétalas de uma rosa -- murcha. é um mapa do tempo. o tempo.  a escuridão.

apesar de tudo, no fundo dos seus olhos se vê as ondas do mar e as nuvens do céu. e a tristeza que faz com que ela seja ainda mais linda. 

terça-feira, 25 de junho de 2019

terça-feira

em heidegger o tempo não é pensando numa linearidade. a temporalidade é mais o horizonte de sentido do próprio ser. de tarde, a manhã pode parecer distante, mas nem por isso menos triste. a terça-feria deveria ser considerada o dia mais triste da semana, como são tristes as histórias de amor que acabam quando o amor ainda vive. nenhuma passagem de tempo pode mudar isso. a tristeza. a distância. o tempo. a terça-feira. que nada mude. que tudo se repita. que mesmo o amor mergulhe numa melancolia de terça-feira, até sumir na escuridão. 

há dias em que é noite sempre e sempre uma cortina dança ao vento. entre bebidas, palavras e cuidados. há um homem que escreve sobre o momento em que desentendeu o mundo. que se sente um pequeno barco à deriva. há alguma coisa que eu vejo quando a tristeza me toma. quando estendo as mãos no ar morno da noite escura. uma noite que me abre com punhaladas na pele. e alguma coisa me diz que há algo que não estou vendo. cegueira minha. a noite também é minha. serei quem mata, serei quem morre. não importa. algo me diz: mantenha os pés no chão. e retroceda apenas quando for a hora. quando é a hora? não se perca. a noite não é de ninguém. não há noite. e as coisas que vejo sem vê-las? 

cada pessoa deve carregar em si o sonho de poder fugir do tempo. carrega o desejo de existir como quem guarda velhos livros num baú. como quem esconde fotos, anotações e pequenas joias. onde tudo permanece. mas nem sempre é possível se esconder. não há mais casa dos pais para voltar, nem lua sobre as árvores. nada de lareiras. nem fogão a lenha para se comer bem. nem crianças correndo brincando rindo. nem banhos no começo da noite. nada daquele lugar de pequenas e grandes cumplicidades. 

minha primeira lembrança foi ter me visto sozinho. a segunda, humano. tempos depois entendi porque a boca queima durante alguns beijos. já era tarde. a noite escura sem lua. beija-se com tudo nesse mundo. com os olhos, com as mãos, com as narinas. inclusive com a boca.  no entanto, sobra sempre isto: a solidão que não somos capazes de romper. 

é pelas coisas que perdi que sei aonde estou. minha filosofia tem sido apenas isso: perdas. e até onde elas me levaram. 


sábado, 22 de junho de 2019

cinco anos

era uma noite na cb. uma conversa num banco da olaria. era uma vida tão doída, tão sozinhas, as nossas. um beijo não dado numa noite na cb. as pessoas e os carros em volta. os muros, os bares. a pele, os cabelos, o medo. a culpa. 

cinco anos não é muito quando se tem quase sessenta ou setenta. cinco anos é uma eternidade quando se ainda é jovem. foram cinco anos de eternidade, toda a eternidade dentro de mim. no desejo que não se concretiza, no abraço que não se permite ir até o fim. o olho no olho. o espelho. a espera. é sempre uma espera. ela vinha, ela ia, ou eu ia, eu voltava. a gente sempre volta. cinco anos. nos últimos cinco anos cada texto meu tem uma pequena dedicatória a essa garota. 

cada texto teu tem uma pequena dedicatória a essa garota. 

tudo preso numa lembrança nebulosa de dor. numa lembrança nebulosa de desejo e cinza. tudo tudo tudo adormecido. e em cinco anos passou uma eternidade. 

na olaria eu passei os braços por sobre os seus ombros. num abraço antigo. ali eu era o mesmo cara de cinco anos atrás. e ela a mesma garota. e só então eu soube que ela tinha muito, muito mais medo da vida do que eu. 

se eu pudesse, diria: não chore. 
e depois: olhe para a multidão. também somos pés sobre a mesma terra. 
pense no que somos. somos apenas canos de fazer bosta. 
quando o gato mia, e seus olhos amarelos nos olham de perto, tudo se dilui. 
e eu diria: não chore, não chore agora.
nem chore depois. 
e eu também diria: estarei sempre aqui. 
como nos últimos cinco anos. 

terça-feira, 11 de junho de 2019

belo

para mim -- pelo menos da forma que eu a compreendo -- uma das passagens mais bonitas da história da filosofia é aquela de são tomás de aquino sobre a beleza. ele distinguiu três características básicas da beleza: integridade, harmonia e esplendor. 

a integridade quer dizer que é belo algo quando nada lhe falta. mas isso não quer dizer que o ente precise estar completo em si mesmo. fala mais sobre a relação de cada existente com a totalidade do mundo. a beleza não deve afastar do mundo, pois, ao contrário, deve transformá-lo. um ser belo ilumina o mundo que o rodeia. uma árvore no meio de uma cidade cinza, por exemplo, transfigura o cenário geralmente feio que a cerca, podendo estar até sem algumas folhas e galhos. sua beleza vem justamente dessa abertura à totalidade do mundo que lhe rodeia e de sua capacidade de lhe dar uma nova forma. é uma beleza que se manifesta "fora de si", a beleza de algo cobre e integra o mundo, para lhe dar uma forma e uma vida nova. 

a harmonia se refere a ordem das partes dentro de um todo. porém, sem que o princípio dessa ordem seja evidente. a harmonia guia o olhar fora do marco de sua presença, entrega ao imprevisto. a harmonia convida a buscar um sentido mais profundo. dificilmente  a beleza aparece a um olhar distraído. quantas vezes não encontramos no rosto de alguém um detalhe, que por si só não é bonito, mas se torna bonito ao fazer parte daquele rosto específico? 

o esplendor implica que a beleza sempre se manisfesta no ocultamento de sua origem. o esplendor expressa sua retirada, sua liberdade, seu ocultamento. a transfiguração misteriosa de algo que contemplamos, que nos fascina, nos atrai, mas nos escapa. não podemos encontrar sempre novos detalhes num rosto que julgamos bonito? a beleza revela o que não se esgota numa presença visível: o invisível que não se faz evidente. nosso mundo tem uma profundidade que se revela aos pouquinhos e que pode nos maravilhar. 

a gente olha o mundo todo dia, mas quase sempre só vê o que está acostumado a ver, vê o que pensa já saber. mas a cada manhã, o mundo pode ser outro. isso é muito claro para quem mora diante de uma árvore, observado-a cada dia. são muitos lugares num lugar só. basta aprender a ver.

para vocês verem que metafísica pode tornar o mundo um lugar menos sem graça. 
hoje, depois de tanto tempo, sonhei com você. era madrugada, me levanto da mesa no escritório para passar café. me viro e, ali, você está. eu me assusto. você não poderia estar ali. eu não sei o que dizer. você não me ajuda. mostro pela janela uma varanda iluminada na casa vizinha. ao olhar a claridade, esperava ter alguma coisa para dizer. mas não consigo. pergunto sobre teus pais e conto um pouco sobre os meus, como se alguma ancestralidade nos socorresse nesse momento. tua boca segue fechada. 

quando ouço tua voz, ela se esparrama por dentro de minha pele, atravessa os músculos, os ossos, e ali ecoa. é como se fosse a primeira voz depois da criação do mundo, por sobre as águas, anunciando a luz. noticiando um novo universo, intangível e coberto pelo véu do desejo. de novo ouço tua voz, e uma engrenagem se movimenta, como se no mais antigo de mim, ali, em cada dia, cada noite, a sua voz viesse me chamar. e você vai embora. e mais nada. nada consigo falar enquanto você se afasta.

e já não te vejo. volto a olhar a janela, e agora a luz está apagada, estive em pedaços. talvez ainda esteja. quando tudo se desfez não ficou de nós, e em nós, nem uma luz acesa na varanda. 

segunda-feira, 3 de junho de 2019

tem dias que, por mais que a gente tente, é impossível produzir. o café se perde servido na caneca, a roupa venta no varal, no livro somem as letras. faz frio. o mundo vai silenciando, como num final de festa. todas as vidas se parecem. o que antes era ponte entre uma vida e outra, agora é cerca de arame farpado, um fosso. a gente se sente cansado e entediado, imagina-se estrangeiro. não reconhece a língua, as roupas, as placas na rua, a comida, os jeitos de ser. 

nesses dias, a maquiagem do mundo é desfeita, acaba a farsa. o ar entre e sai. nessas horas, parece que até o ar que gente respira é falso. trabalhar e escrever vai ter que ficar para outro dia. nada nos inspira. temos ideias e nada se sustenta. toda palavra sobra, e sentimos que nenhuma palavra basta.  toda palavra é insuficiente, como se as coisas, os lugares e os sentimentos tivessem um nome desde sempre, e ninguém nunca sabe -- a gente diz muitos nomes para o ser, mas o nome dele mesmo, qual é? esse nome absoluto, essa palavra, é o que buscamos? 

talvez, perder o chão seja parte da vida, como as águas do rio que precisam estar em movimento para não apodrecer. nestes dias, desisto de trabalhar. me levanto discretamente, vou até a porta da casa e me despeço do gato com um carinho. olho o céu sem nuvens e sinto o ar do inverno ficar mais leve. chamo algum amigo para beber no mesmo bar de sempre, alguém que também se deixou desproteger. a gente bebe pra tirar esse gosto amargo da boca. mas o amargo é por dentro da boca, por dentro de nós mesmos. quando mais bebemos para tirar o amargo da boca, mais em amargo nos tornamos. 

sexta-feira, 31 de maio de 2019

escrever é mais ou menos isso: a gente se veste para que outro posso nos despir. é construir pontes com as pedras do rio. depois a gente se pergunta quanto tempo levará para que as palavras envelheçam, para que as frases se cubram com poeira, e os fungos e as rachaduras tornem todo o sentido incompreensível. quanto tempo nossa língua morta demora pra secar? quanto até nossas palavras não nos vestirem mais e ninguém puder nos despir? quando a gente não saberá quanto do que dizemos flor é flor nem saberá quanto da noite é noite quando dizermos. 

eu lembro da história de um guerreiro corajoso que vivia sem medo de nada porque seu coração estava em outro lugar. não estava ali, no seu peito. estava no fundo do mar, dentro de um baú de pedra. o escrever é o oposto dessa vida do guerreiro com o coração oculto. 

escrever é estar com o coração exposto o tempo todo. 

quinta-feira, 25 de abril de 2019

escuro

um bar qualquer da cb. noite. todo o lugar sem luz. escuro. a moça que atende chega e acende o fogo de uma vela. traz mais uma cerveja. a vela apaga. ele dá dois goles na bebida. deixa tudo como está. noite fria. rua vazia. alguns passos. no escuro da cidade cada um dorme? alguém não dorme, ele pensa. 

ele sai. caminha, casas pequenas, ruas pequenas, becos. ele vai e atravessa essa rua sempre cheia de gente e hoje tão deserta, tão deserta. na joão alfredo se tem luz. mais um pouco e tudo será movimentado. como se um alarme chamasse toda a gente para o mesmo lugar. há um alarme. sim. dentro da cabeça. que não para. que pensa: estou quase chegando. ergue os olhos do chão. busca lugares iluminados. busca qualquer coisa que não seja escuro. qualquer coisa para não se seguir andando. qualquer lugar que não seja sozinho. 

ele vai e passa por um ponto de ônibus. um homem espera. e depois mais alguém. e outro alguém. bastaria que um acendesse o cigarro e ônibus viria. todo mundo sabe disso. sempre que alguém acende um cigarro esperando ônibus, ele acaba chegando. e tu desperdiça um cigarro. então alguém do pequeno grupo se rende. a chama brilha perdida. os faróis do ônibus já aparecem ao longe da rua. é sempre assim. alguém comenta. 

ele imagina as pessoas subindo e se sentando. alguém fica em pé. alguém sempre fica em pé. alguém conversa com o motorista. ele diz sim com um aceno curto de cabeça. ele quer dizer sim sem que possam confirmar que ele disse sim. mais adiante alguém irá subir e começar a ladainha de sempre: boa noite eu poderia estar matando poderia estar roubando, uma moeda pelo menos, pedir não é vergonha. 

ele passa pelo ponto de ônibus. mais duas mulheres chegam. mãe e filha, talvez. ele segue andando. é parado por uma mulher no escuro. desculpa te assustar, to precisando de ajuda porque tem um filho meu que ta preso. faz dois anos. ele errou e ta pagando. ele diz que não tem moedas e tem pressa. começa a caminhar mais rápido. o coração tão pesado de outras coisas, por assim dizer. cada um se ocupa com seus escuros. no mundo. o mundo sem solução. 

finalmente um pouco de luz. parece que todo mundo resolveu se concentrar num ponto. este ponto. o ponto em que ele está. justo este. essa existência que grita. grita. e por dentro esmaga tudo. mesmo vivo. o movimento aumenta. várias gentes que reúnem esse pouco, esse quase nada. os prédios iluminados agora existem. ele não olha. ele que vê tanta coisa apenas anda. mais um ponto de ônibus. mais alguém fumando. a rua já está totalmente clara. ele caminha caminha caminha. por fim o prédio. o portão grande e cinza. do lado de dentro todos os outros. os outros. a vida que somos pulsa numa cozinha num quarto numa sala. antes de entrar ele pensa: será que dá próxima vez ela vai querer me ver? 

terça-feira, 9 de abril de 2019

estar pensando nela
me faz deixar de me sentir um qualquer e ser
antigo
antigo só como algumas pedras
algumas árvores
e um e outro livro
conseguem ser.

domingo, 31 de março de 2019

como foi que chegamos até aqui?

quatrocentos e trinta e quatro mortos ou desaparecidos
tantos tiros nos mesmo corpos e tantos outros machucados
custo a acreditar que, no fundo, não sejamos todos bons e iluminados
porque não, não somos
queremos o que querem os mais fortes sobre os pequenos
queremos o sangue dos outros, esse mínimo
o tempo dos vencedores a criar um país como se fosse só seu

na gaveta de todos há uma arma para o caso
atenção: vocês todos tem na gaveta uma arma para o caso?
no dia que seria o caso ignorou mulheres e crianças e disse: pegue isso protegê-los
de que nos protege a mão com a arma?
de viver como bichos?
de amar sem amor?

quatrocentos e trinta e quatro mortos ou desaparecidos
corpos mortos empilhados uns sobre os outros buscando armas escondidas no fundo de seus olhos
não acredito, no fundo do fundo, que ainda tememos a noite que não vem o dia depois de cada abraço
veja o homem, cujo o corpo tremia diante do gatilho que lhe era desconhecido, veja
deixe esse corpo repousar

não tem armas os corpos nem gavetas
quatrocentos e trinta e quatro mortos ou desaparecidos
nossos olhos abertos na escuridão
os olhos bem abertos
no banco do motorista no banco do passageiro no carro no ônibus
sangra a visão esses corpos
no fundo bem no fundo não acredito, ou até acredito, que entre as gentes habitam monstros disfarçados de sensatez
alguns, dizem, não sentem a dor mas a gente sente
e talvez, veja que digo talvez, nisso resida nosso grande segredo, nossa sobrevivência

n.

é como se ela fosse um rosto coberto com véu. como se estivesse sempre distante. como se fosse impossível tocá-la. porque ela mais uma vez se afasta. sua luz é obliqua. por isso, ela se protege e impede movimentos agressivos. ela pede silêncio. então fico quietinho e penso: se no fundo dos teus olhos não houvesse tristeza, tua alegria não seria tão bonita.

sábado, 16 de março de 2019

todo dia eu preciso fazer um esforço fora do comum para não ser tomado por pensamentos ruins. me contaminei com eles. adquiri um medo inexplicável do amanhã. passei a ver as pessoas ao meu redor com olhos vesgos e míopes. tenho ondas fortes de depressão sem motivo aparente. não sei como me livrar de tudo isso. me livrar de você. mesmo não te vendo, não te tocando, não trocando uma única palavra com você, tudo o que é teu ainda me faz mal. me tira o sono, me revira o estômago, me dá ânsia.

não sei o que fazer para me desintoxicar de uma vez por todas. dizem que o tempo é o melhor remédios para os malem que não tem cura. mas, e enquanto o tempo não chega? como suportar as horas em que beira ao desespero? toda essa desintoxicação às vezes é insuportável. a gente foi um vício. e, por deus, eu prefiro morrer do que ter mais uma recaída. 

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2019

n.

desde aquele dia, exploro o mar atentamente como o radar que busca o navio inimigo. uma tensão inquieta substitui a tranquilidade anterior da contemplação. desejo e espero: quero adivinhar teu trajeto em profundezas de água, conhecer teu fôlego para que o caminho dos meus olhos cruze com os dos teus. 

sábado, 26 de janeiro de 2019

M.

esse não é um post sobre amor. é sobre alguém que não consegue mais tentar. de quem se alimenta de pequenas sensações de fracasso. de alguém que, depois de tudo, só consegue ser movido pelo vazio.

eu assumo que não estou preparado para descobrir o quanto você é diferente. talvez pessoas como você sejam raridades. isto eu nunca saberei. abri mão desse tipo de coisa, junto com a minha coragem. prefiro trocar essa possibilidade pelo que tenho agora: sentimentos frágeis, uma vida levada na superfície. troquei você por algum sexo mais ou menos com uma pessoa aqui e outra ali. escolhi desistir de procurar. hoje, é o este é o único jeito que sei viver. 

talvez eu esteja perdendo algo que não terei igual. talvez ninguém mais terá esse gosto, esse cheiro, esse jeitinho de terminar um beijo. pode ser que eu nunca mais encontre esse olhar que me frita, que me faz pensar em sexo logo ao acordar. pode ser que ninguém mais tenha essa voz que faz o meu pau ficar duro automaticamente. eu não quero esse mundo maravilhoso prometido para nós. eu não consigo mais nem mais falar nós. eu não consigo mais sentir a adrenalina que alimenta os pobres apaixonados. 

desculpe, mas chegou a minha vez de ser idiota. 

não é que não seja o momento. nunca será o momento. você é ótima, mas eu estou quebrado. aconteceram coisas que me tornaram incapaz. então vou abrir mão. abrir mão de todas as risadas que poderíamos dar juntos, da possibilidade de um futuro feliz. assumo o risco de um dia cruzar com você pela rua, e dar de cara com seu marido perfeito, carregando um bebê de propaganda, com aquele semblante inabalável e insuportável de felicidade. daria um oi constrangedor e perguntaria onde tem um bar. passaria o resto do dia bebendo sozinho. e você teria o direito de rir da minha desgraça. 

eu me tornei um imbecil, eu sei. mas eu não consigo mais entrar numa relação. tenho medo do mundo adulto. já fiz essa aposta outras vezes e perdi. você é incrível. você me faria crescer, pensar numa carreira, vestir uma roupa passada, beber um pouco menos, frequentar lugares em que os garçons sejam legais. você me fez querer ser melhor, e hoje essa sensação é insuportável. 

sábado, 12 de janeiro de 2019

tontura


em floripa uns amigos me levaram para um passeio de barco. algumas pessoas sentem tontura em alto-mar. precisam segurar a mão de alguém para consegui olhar as ondas no mar ou algum pedacinho de peixe. eu não senti tontura durante o passeio, mas me sinto perto de dessas pessoas. 

há poucos dias terminei de ler um livro sobre a situação atual da física teórica. uma ideia em especial chamou muito a minha atenção: a mecânica quântica nos ensinou a pensar as coisas, em nível elementar, não como elas são, mas sim como elas acontecem, como elas influem uma sobre as outras.  as coisas, em nível microscópio, só existes quando saltam de uma interação para outra. ou seja, o mundo das coisas existentes foi reduzido ao mundo das interações possíveis e, por isso, devemos pensar o mundo não como uma totalidade de objetos que estão neste ou naquele estado, e sim como processos, passagens de uma interação a outra, que não podem ser previstas de maneira absoluta, mas apenas de modo probabilístico.

vivemos sobre esse mundo desordenado como se fosse como se fosse firme, seguro e, principalmente, eterno. planejamos o que vamos fazer no próximo final de semana, no mês seguinte, daqui a um ano, quando formos adultos, quando ficarmos velhos, etc. procuramos estabilidade de muitas maneiras: no emprego concursado, no amor para sempre, no apartamento próprio, na assinatura da tv a cabo, na grana guardada na poupança. mas às vezes ficamos um pouco chapados, bebemos até pegar no sono ou metemos para dentro alguma substância que faça o estável ficar levemente abalado por alguns instantes. caminhar sobre o chão indeterminado e olhar para o mar vertiginoso não deveria ser o bastante?

tudo bem, eu entendo. a instabilidade constante deve ser incômoda e não interessa muita gente, principalmente aqueles que lucram com a estabilidade alheia. mas a noite pode precipitar sobre nossas cabeças, nosso barquinho pode perder o rumo e ainda assim há lugares no mundo em que nos sentimos mais leves, mais soltos, mais à deriva. isso não conta? lembro que quando eu era criança gostava de girar, girar, girar, repetidamente, para sentir o barato da tontura. tem que ser meio criança ou meio físico quântico para sentir essa vertigem na vida?

cada vez que eu tenho algum desespero ou uma profunda tristeza – o que tem sido cada vez mais constante – me apego a ideia de que de nada adianta sofrer se de um segundo para outro tudo pode mudar e até desaparecer, sem que ao menos tenhamos tempo de ter consciência disso.

eu não senti tontura quando naveguei e olhei para o mar. mas acho que trago comigo esse sentido estranho de instabilidade. essa tontura, essa necessidade de ter que segurar a mão de alguém para enfrentar o desconhecido. hoje, pensando no mar e na física quântica, nos passeios de barco e no mundo como uma sucessão de eventos quânticos granulares e indeterminados, me pergunto se, mesmo quem enjoa em alto-mar, não gosta, de vez em quando, de olhar para as ondas em permanente fuga debaixo de nosso barco.