sexta-feira, 30 de outubro de 2015

Tudo errado no mundo

unha encravada  
humor politizado 
aquecimento global
fila pra banheiro 
fome e guerras 
epistemologia social 
você longe de mim

sábado, 19 de setembro de 2015

Sobre quando a verdade nos constrange

Nunca ninguém aceitou a tristeza que lhe foi reservada. Nunca ninguém suportou o baque com o inevitável sem planejar uma fuga imediata. Ninguém nunca ficou parado sem reação numa dor esperando ela dar o seu último espasmo. Ninguém nunca fez nada disso. Ninguém além de mim. 

A vida inteira meus amigos me censuraram, diziam que eu me apagava demais aquilo que todo mundo evitava. Você precisa reagir!, diziam, Você só pode gostar de sofrer!, diziam também. E no final das contas, nos machucamos tanto e enfrentamos tantos perigos que merecemos sim o riso forçado no rosto, a cabeça aberta com álcool, o corpo transbordado no sexo, a autoconfiança fake no pó. Acontece que nunca me convenceram do tudo bem obrigatório, nem os propagandistas da alegra desesperada e nem as indústrias da felicidade. Muito menos as séries de televisão melosas usadas para disfarçar em nossos corpos as marcas da melancolia. A verdade não pode ser disfarçada e nem embelezada. A verdade não pode ser rejuvenescida. Se você disfarça ou foge da verdade, ela se afasta um pouco mas logo volta sob o nome de Inevitável. A verdade tem mais é que ser assumida, como uma marca de nascença -- mas não como uma marquinha charmosa que que trazemos na pele desde o útero, e sim como uma cicatriz formada lentamente na nossa própria experiência de estar jogado no mundo. Como se tivéssemos que nascer todos os dias, sabendo que isso dói. Uma cicatriz que perdeu o seu sentido, mas que continua ali, marcando, marcando apenas uma ausência. 

E quem é que pode nesse mundo se considerar o senhor do tempo para medir o prazo certo das sensações e da cura? Quem tem a autoridade para dizer quando já basta de lucidez?

Isso não é só uma atitude de abraçar o pior. Nunca senti orgulho da dor e nem tentei disfarça-la com química. Talvez eu tenha buscado, e é apenas isso, uma dor pura, sem fertilizantes. Porém isso foi só porque queria assumir o que era meu. Se a dor é o que temos de mais nosso, não devemos perder tempo sentindo outras coisas. Uma dor sem conservantes, sem trilha sonora. Pura como um contato com Deus. Que dê o que tiver que dar. Até acho que todo mundo deveria ser um pouco assim. Pelo menos assim, pelo enfrentamento, seguiríamos em frente mais honestos, mais limpos, mais expurgados, No mínimo seríamos menos prepotentes.

Sozinho, sem disfarces, não mais impelido pelos outros a buscar nas gargalhadas um amparo a todo custo, passei a suspeitar desse mundo em que, na desilusão de uma paixão recém concluída, corre-se desesperado atrás de um novo êxtase - e depois outro, e outro, e outro, encobrindo, com isso, todos os furos de nossas camadas, maquiando todos os sinais de nossa orfandade. Até que toda amargura e toda solidão se concentrem num acontecimento inevitável, cheio d angústias e com horas contadas, mas avizinhado por tantos outros cheios de obrigações e prazeres com os quais nos distrair.

É apenas por honestidade que me recuso a repetir esse movimento mais uma vez. Porque aceitar o escuro significa saltar para a nudez da morte, esta da qual fugimos a todo custo. Aceitar o escuro é, na verdade, aceitar a pureza de nossa força vital mais inconclusa. E então diante da agonia eu nunca entendi (e foi por não entender que nunca aceitei?): sempre paralisei diante de tudo aquilo que não pude controlar. E, quando paralisava, eu era como um corpo que cai para dentro. Eu olhava ao redor: via as ruas e as pessoas, via fantasias, via conversas sendo interrompidas por gargalhadas e beijos, e parecia que só eu aceitava a queda. Só eu abria o peito para escolher. Eu era único que dizia sim ou não para a vida. E, no entanto, não me sinto melhor por isso, nunca me senti especial. Pelo contrário: foi daí que veio toda minha fragilidade e minha timidez. Vem daí todo o meu estranhamento e o meu desencaixe. 

No fundo mesmo, queria era ser igual. Porque ser igual sempre me pareceu a melhor opção: os outros pareceram sempre tão mais a vontade do que eu nesse mundo. Ser igual poderia ser viver com mais facilidade, escorregar sem resignação por dentro da existência. Acontece que meu ser é pelo avesso e, constrangido pelo medo, ele prefere não se expor. Eu nunca desejei essas coisas. Nunca desejei ser rejeitado. Nunca desejei ser o espelho que reflete o que ninguém quer ver. Eu também queria um pouco de colo, um pouco de cuidado. Queria ser aceito, queria ser mais um bonitinho. Eu também queria desviar da desolação e da vertigem e buscar acolhimento. Mas confesso que havia, dentro dessa desordem a que acostumei a chamar de lar, paredes invisíveis que eu mesmo ergui sobre o terreno vulnerável aonde me coube crescer - confesso, sim, que havia ali alguma força, alguma firmeza, alguma virtude que era só minha. A isso tudo eu dei o nome de Coragem. 


terça-feira, 8 de setembro de 2015

Prezada Amorinha,

Não, eu não estou te esperando, mas isso não me impede de às vezes pensar, ansioso, que quero que você chegue logo no chat. Aí eu saio correndo, ligo o computador e fico online. Mas você nunca vem. Dizem que quando a gente espera muito, nada chega. Então eu me apego com esperança aos dias em que não penso em você. Como se eu fosse, por acaso, cruzar com você na fila do supermercado ou que você fosse bater à minha porta de surpresa quando estou dormindo no meio da tarde. 

E é difícil. É difícil porque na verdade eu não sei como você é. Eu não sei do que você gosta, não sei o seu endereço. Às vezes te imagino, e é só. Te imagino com todas as qualidade que eu espero que você tenha. É errado, eu sei, e já me disseram isso. Porque de repente pode virar expectativa e expectativas eu não quero mais. Eu to cansado de expectativas. 

Queria apenas que você chegasse. Porque penso em você e penso que teria muito o que aprender com você. E de você. E, talvez, quem sabe, ensinar. Te carregaria sobre os meus ombros caso você estivesse cansada demais para subir as escadas do prédio. Te enxugaria os olhos se você chorasse. Te apoiaria estando você certa ou errada. Te esperaria o tempo que fosse preciso para você escolher uma roupa. Te deixaria o último pedaço da coisas gostosa que estivéssemos comendo. Te perdoaria caso você fizesse algo de errado (porque você teria me ensinado a perdoar). Te pediria desculpas caso eu fizesse algo de errado. Te contaria a razão da minha cara de preocupação. Te explicaria a razão pela qual acho Derrida o maior filósofo dos últimos tempos. Te acompanharia numa festa chata, se você achasse ela divertida. Iria com você aonde você quisesse ir e ficaria lá com você, caso você quisesse ficar. Te apoiaria nos teus planos, mesmo nos mais absurdos. Eu te abraçaria sempre, todos os dias. Eu te beijaria sempre, todos os dias. Te tocaria sempre que pudesse, todos os dias. Te faria sorrir todos os dias. Te faria chorar às vezes (desculpa). Eu te olharia com os olhos de quem te quer para sempre.

Sabe, às vezes faz falta não ter alguém para dividir as coisas. Ou somar. Às vezes muita coisa falta. Às vezes muita coisa sobra e eu não sei onde guardar. Eu não sei pra quem contar. Eu não tenho com quem contar. Por tudo isso quero que você chegue logo. Chegue do jeito que você é. Do jeito que você está. Para que eu não precise mais te esperar nesses dias longos e cinzas e tristes nos quais te espero. Então, se você estiver por aí no Amapá, saiba que eu estou por aqui no RS . Então se você estiver por aí, dê uma passadinha aqui no sul, e me leve, Amorinha, para o resto da sua vida. 

Despretensiosamente, 

Pitu

sábado, 22 de agosto de 2015

Garotos bonzinhos merecem nudes

O mundo, merda, o mundo. Esse mundo estranho, que talvez não seja mundo e que, no entanto, é o nosso mundo. Merda, o mundo. Respira fundo. Respira fundo. A chuva, os comprimidos, o álcool, a noite. As florezinhas azuis. Azuis. Azuis. As pessoas. Rinocerontes. Rinocerontes. Rinocerontes. As pessoas na rua escura passam em câmera lenta ao nosso redor. O cheiro da chuva nos transporta nessa viagem pelas vozes, pelas sombras, pelos barulhos, pelas bebidas e pelos silêncios de uma fauna que se desliza secreta pelos labirintos da cidade, a cidade, uma cidade, baixa. Esses labirintos cheios de espelhos quebrados nos quais não nos reconhecemos, aonde nos desencontramos e então nos damos conta de que não somos mais do que uma pequena e discreta criatura que rasteja pelos labirintos, uma criatura triste embriagada de toda a merda, de tanta florzinha azul despedaçada pela chuva, de tanto diamante que se quebra, de tanto coração que se quebra. O mundo. As ruas, O mundo. A chuva. O mundo é a grande casa de todos, uma casa por onde um dia entramos através de uma portinha e outro dia sairemos por outra. Uma casa que, apesar de tudo, nunca te fará sentir em casa, nunca te sentiras acompanhado, uma casa em que ninguém irá te receber de braços abertos, ninguém te oferecerá beijos de amor em uma noite de chuva, uma casa cheia da chuva triste dos amanheceres, enquanto teu corpo fedendo cerveja se perde na corrente da noite como uma flor no cano de um revólver prestes a disparar. 

O mundo, merda, esse mundo, esse mundo que faz a gente se sentir de algum modo como pequenos drogados alucinados que andam perdidos pelas ruas escuras que se estendem diante nossos olhos. O mundo que faz com que nossos corações latam rápido como cachorros angustiados em uma noite de foguetes e tiros. Um mundo cheio de flores destruídas pelas chuvas tristes que varrem as ruas. Um mundo que faz a gente viver como mariposas invisíveis que vão picando as flores transparentes dos corações por cima das ruas e da chuva, perguntando onde se esconde o amor, se por detrás das árvores ou das garrafas vazias. O amor se esconde por detrás das montanhas, por detrás dos aviões, por detrás do Amapa. O amor é a musiquinha triste que produzem as árvores da Redenção quando estão bêbadas às seis da manhã. O amor são duas mãos violentas que te arrancam o teu coração e o joga até as ruas, onde teu coração é pisoteado por uma multidão surda. O amor é uma chuva de flores azuis que caem sobre tuas mãos e teu rosto. 

O mundo é nossa casinha onde o amor só vem de vez em quando como um vento fugaz e silencioso, porém que sempre se vai e sempre nos deixa outra vez como o sangue cheio de álcool, cheio de turbinas, sempre nos deixa como pássaros feridos e indefesos, assustados pela chuva, assustados pela noite, assustados pelas luzes, assustados assustados assustados pela distância, sempre nos deixa e nos deixa e se vai com a chuva, enquanto nossas flores se secam se secam se secam se fodem. Merda, o mundo. 

No entanto, sempre nos salvamos de formas bastante improváveis. 

sexta-feira, 21 de agosto de 2015

sobre gostar de alguém

moedas para o lanche caro do filho que não temos 
material escolar com lápis-tabuada que se imaginam perfumados
cadernos acompanhados de um folheto sobre o perigo das drogas
gostar de alguém é se espremer em um ônibus lotado 
vendendo um tipo de chiclé que ninguém compra.

gostar de alguém é ver as nuvens imensas suspensas lá se atropelando 
e sempre pensar que se terá um bom dia
gostar de alguém é se preparar para passar o dia andando de bicicleta roxa
quando o telefone toca você saiu na rua de pijama. 

gostar de alguém é preferir não falar nada e imaginar por horas
você triste no ônibus e as pessoas rindo da sua camisa de banda 
e eu rindo de sua camisa de banda e rindo de suas camisas todas 
gostar de alguém é preferir não fazer nada 
a ficar procurando o seu nome no google

gostar de alguém é não gostar mais dos sábados dos domingos dos dias de semana 
gostar de alguém é não querer mais feriados não querer mais tirar folgas
gostar de alguém é querer tirar apenas um dia para dizer 
"então agora que há você o que acontece comigo?"

segunda-feira, 27 de julho de 2015

O dia em que a orientação do profe Tim foi longe demais

XV Semana acadêmica do PPG em Filosofia. Greg apresentava seu trabalho sobre a desconstrução no Direito para em um miniauditório lotado de colegas, entre eles seu orientador, o profe Tim. O doutorando explicava calmamente suas profundidades no microfone da mesinha principal e todos davam ótimas risadas com suas anedotas contadas durante a apresentação, que poderia muito bem ser filosoficamente insignificante, porém era também bastante agradável de se ouvir.


-- Derrida, nooooossa, aquela lá lacrava demais hahaha. 

Todo mundo ria muito e se divertia. Greg não podia esperar para finalmente acabar o tempo da apresentação e começar o tempo das perguntas, só para ouvir os elogios rasgados camuflados de perguntas do seu orientador. 

Quando o mediador encerrou o tempo de apresentação e abriu para as perguntas foi dito e feito: lá estava o profe Tim com a mãozinha levantada pronto para fazer a primeira pergunta. 

-- Professor Tim irá fazer a primeira pergunta -- disse o mediador, passando o microfone de perguntas para o profe Tim. 

Greg se ajeitou na cadeira, deu um gole em seu copinho de água e pensou satisfeito: "me dei bem, elogia mais que ta pouco, profe". 

-- He he he, tudo bem, meu amigo Greg? Vejo que você está aqui hoje fazendo essa apresentação, na frente de todo o departamento...  - Tim percorreu todo o auditório com os olhos - Minha pergunta é bem simples, meu aluno: hoje depois das apresentações tu vai me levar pra jantar? 

-- Como assim, professor? Não entendi. 

-- Eu espero que tu me leve pra jantar pelo menos né, porque com uma apresentação dessas tu só pode ta querendo me foder. 

Os organizadores do evento lançam olhares desesperados um para o outro e Greg tenta se defender, sem jeito:

-- Pois é, professor, é que eu não sabia que o senhor estaria assistindo, senão teria preparado algo melhor...

O doutorando nem conseguiu terminar a sua resposta e o profe Tim já estava de pé na sua frente e, com um sorriso, apertava seu mamilo com um pouco de força e retrucando:

-- Me fala uma coisa aqui, seu merdinha. Só me explica uma coisa aqui, seu saco de bosta, seu liquidificador de porra. Me diz por que esse monte de estrume que tu chama de texto de filosofia não tem referência a Levinas e não tem nenhuma citação minha comentando Levinas? 

O espanto já tomava conta do auditório. Greg congelou. Seu texto de fato não tratava de Levinas e não citava o profe Tim uma única vez. Ouviu o auditório todo silenciar-se. Todos sabiam o que viria a seguir. Todos eram cúmplices das insanidades do profe Tim. 

-- Sabe o que, professor... É que nesse texto queria focar em Derrida sem misturar com Levinas... E eu não citei o senhor porque... porque... -- Nessa altura o mamilo de Greg já estava escuro como uma azeitona preta. 

Profe Tim largou o mamilo do seu orientando e começou a andar em círculos diante da platéia do auditório:  

-- Não tem Levinas então? Tu me faz sair da minha casa sete da manhã nesse frio pra chegar aqui e não escutar um ai sobre Levinas? É isso mesmo, seu estojo de pica? Tu quer que eu baixe a calça pra me fuder mais fácil? -- disse o profe fazendo de conta que iria tirar a cinta e baixar as calças. 

--Sabe o que é, professor, deixa te explicar...

-- Sabe qual é o problema, Greg? - interrompeu o professor com um grito -- O problema é que tu ta me fodendo ai e ainda nem me beijou na boca. 

O profe Tim pegou o copo de água do palestrante, afastou-se da mesa, deu um gole e atirou-o contra a parede, fazendo surgir uma chuva de cacos de vidro. Na platéia todos se abraçavam com medo. As orientações do professor Tim estava indo longe demais. 

-- Professor, hã.....

-- Cala a boca, seu arrombado. Me dá aqui esse texto, me dá aqui essa bosta de texto, Greg. Nenhuma linha sobre Levinas. NENHUMA LINHA SOBRE LEVINAS, CARALHO. Tu já botou o pau pra fora? Porque tu deve ta querendo comer meu cu né, só pode ta querendo me foder. Passa uma vaselina antes pelo menos né, irmão, Não mete no meu cu a seco assim que dói. PUTA QUE PARIU NENHUMA CITAÇÃO MINHA? NENHUMA?  

Com um chute fortíssimo o garoto-propaganda de Levinas no Brasil arremessou o texto do seu orientando para o outro lado do auditório. O professor Tim ainda começou a derrubar todos os equipamentos que estavam sobre a mesa, o que deixou todo mundo ainda mais assustado. 

--NÃO TEM ROSENZWEIG TAMBÉM NÉ, SEU CUSÃO? CLARO QUE NÃO TEM ROSENZWEIG! CLARO QUE UM FILHO DE UMA CADELA GORDA FEITO TU NÃO IA CITAR ROZENZWEIG. 

Enfurecido, o profe Tim partiu uma das cadeiras do auditório ao meio com uma joelhada. Soando muito, o levinaseano continuou:

-- "Olha só o profe Tim lá lá lá, ele só sabe elogiar, vou fazer qualquer merda aqui que ele aceita lá lá lá lá" foi isso que tu pensou né, seu bafo de pica? Me diz uma coisa, por que tu não larga a Filosofia e vai chupar um canavial cheio de rola? Custava me citar, Greg, custava? O que foi que eu te disse na nossa última orientação?

-- Pois, professor, eu pensei em citar o senhor...

-- Mas não citou né, seu bosta. Minha vontade é sair daqui agora e passar meu pau na maçaneta da porta do teu corra, seu filha da puta. 

-- No final acabei não citando...

-- PUTA QUE ME PARIU, GRAG. TU FEZ MERDA. TU CAGOU NO PAU, TU CAGOU BONITO NO PAU, TU ARRIOU AS CALCAS, SENTOU NO PAU E CAGOU BONITAÇO NELE. TU É UM MERDA. TU É UM CAGA PAU. O QUE EU FAÇO COM UM ORIENTANDO DESSES? ME DIZ, SEU FILHO DE UMA QUENGA. EU VOU CAGAR NA TUA GAVETA DE MEIAS, SEU MERDINHA. OLHA O QUE FAÇO COM UM BOSTA FEITO VOCÊ...

Profe Tim se projetava para cima de seu orientando para resolver tudo na porrada, porém foi interrompido pelo coordenador Agemir, que se colocou, como bom cristão, entre os dois; 

-- Escuta aqui, professor Tim. A gente é só colega, eu quase nem te conheço. Não batizei teu filho, nunca fui na tua casa, mas quero teu bem. Então me escuta: esse evento tu não vai estragar com tua vaidade fora do normal. Vai pra casa, Tim. Vai que é melhor. 

Observando seu colega nos olhos, Professor Tim deu algumas bufadas, caminhou de um lado para outro, e deu um soco certeiro na cara do coordenador Agemir, deixando-o desacordado na hora. Então Tim saiu do auditório mandando todo mundo se foder. Na platéia, professor Nytha abraçava professor Lipe, que já se derramava em lágrimas:

-- Calma, professor, ele foi embora. Acabou. O pesadelo acabou. 

Nisso entrou mais uma vez pela porta o profe Tim, dessa vez três vezes mais furioso e armado com um taco de beisebol. Ele apontou sua arma branca para Greg e disse:

-- Olha bem pra mim, Greg. Ta olhando, porra? Acho bom. Agora me diz com sinceridade: Que autorzinho o senhor vai citar no próximo trabalho? 

-- Hã...

-- RESPONDE, PORRA, TO MANDANDO!

-- Levinas....

-- LEVINAS E QUEM MAIS? QUEM?

-- Levinas e o senhor... 

Professor Tim juntou o texto do doutorando, balançou o papel  e disse:

-- E com esse texto aqui tu sabe o que vai fazer com ele? Tu vai enfiar ele no cu. Eu vou te botar de quatro e enfiar ele no teu rabo, página por página.

-- Professor, por favor, não precisa disso. Eu juro que vou cavar um buraco bem fundo lá na graminha e enterrar ele bem fundo. Ninguém nunca vai ler essa merda de novo. 

-- Isso mesmo, Greg -- disse Tim voltando a ficar calmo -- tu vai pegar uma pá e enterrar essa merda, mas não vai ser aqui, vai ser bem longe, que é pra garantir que nunca mais vou ver essa merda na minha vida.

-- Eu prometo, professor...

Abaixando o taco de beisebol, o professor caminhou lentamente até a saída do auditório. Diante da porta de saída, ficou em silêncio por alguns segundos para se acalmar. Após respirar fundo, virou-se novamente para a platéia e disse: 

-- O próximo orientadando que pegar hoje sem me citar, eu mato. Juro que mato.






quinta-feira, 28 de maio de 2015

quando não sei

quando não sei 
se é amor ou se é pena 
sei que é amor

imagino você aos sete anos no quintal:
da dó 
pensar no copo de coca ou suco 
que nunca dividimos 

suas fotos no face no último ano:
quantidade considerável de pena
seus sonhos de sucesso e popularidade: 
mais dó 

seus hábitos e gostos já surrados pelo tempo:
mais pena 
e um pouquinho de nojo 
seus romances anteriores: dó 

foto de festa na casa da amiga
quando você ainda estava no colégio: 
um resultado é um pouco de pena
de você com seu jeito esquisito 
sem saber se enturmar
e de mim que não me chamei rogério ou renata 
pra naquele dia te conhecer

quando não sei 
se é amor ou se é pena
sei que é amor

quinta-feira, 14 de maio de 2015

depois 
quando já não existir depois 
não existe 
só existe o agora que continua
insistente
se eu fosse um menino ou uma menina de olhos grandes 
o agora telefonaria para mim ou 
pelo menos mandaria um
whats
pra que assim a gente se gostasse no primeiro
instante 
e viveríamos dias inteiros estragados 
por detalhes e aparelhos com 
defeitos 
e despencando dos cabides
como um gênero errado de filme ou um amigo
inconveniente 

sábado, 9 de maio de 2015

O cara que andava errado

Trilha sonora do post, tasca o dedo aí no play, irmãozinho: 



"Eu andei errado", era o pensamento que tomou a cabeça de Carlos. E ele nem estava sendo metafórico, ou pessimista, ou coisa do tipo, embora volta e meia questionasse seu estilo de vida e suas escolhas. Carlos literalmente andava errada. Clinicamente diagnosticado. "Eu andei errado a minha vida toda". 

-- Você está andando errado -- foram estas as palavras do médico. 

Carlos bem que desconfiava que havia alguma coisa errada com ele, afora o vazio e o desconforto existencial com a própria figura e uma tristeza generalizada. E justamente naquela manhã em que estava determinado a mudar (o cabelo, a roupa ou pelo menos a música que escutava no ônibus ao caminho do trabalho), ele notou um estranho buraco no calcanhar do pé esquerdo do seu sapato. E não era apenas neste sapato. Uma rápida investigação em seu guarda-roupa mostrou que todos os pares esquerdo dos tênis e sapatos de Carlos tinham a mesma marca. Aparentemente, Carlos andava errado. Resolveu no mesmo dia procurar um médico. 

"Eu andei errado", era ao mesmo tempo a resposta para o mistério e o início de novas inquietações. Até então andar sempre pareceu uma coisa que Carlos fazia sem maiores problemas. Na verdade, de todas as coisas da vida, andar era uma das poucas que ele tinha alguma segurança em não decepcionar. Porém, agora, veja você, ele descobriu que anda errado. Fracassara numa das tarefas mais básicas para todo ser humano. Nesse exato momento em que você lê esse texto, provavelmente alguma mãe orgulhosa em algum lugar do mundo está contente porque seu bebê de onze meses aprendeu a andar. 

No entanto, a Seinsvertändnis trabalha de formas misteriosas. Durante o assombro ali mesmo diante do médico, não demorou muito para que Carlos começasse a ver as coisas por um novo viés e passasse a ter uma visão otimista do seu fracasso fundamental -- e ele sabia muito bem colocar seus próprios erros na conta dos outros. Tomou conta de seu espírito a ideia de que foi justamente isso o que ele buscou a vida toda. 

"Ora, se eu fracasso numa tarefa tão simples quanto andar, então ninguém deve esperar nada de mim e qualquer pequena conquista já uma grande realização". É com esse pensamento que Carlos pretendia relativizar todos os seus fracassos. Demorou nove anos para se formar em administração numa particular? "Cara, eu nem sei andar direito, ter entrado numa faculdade já foi uma grande coisa". Nunca conseguiu ter um relacionamento duradouro com uma mulher? "Bicho, nóis não consegue nem ir até a esquina sem cagar tudo". Reprova em todas as provas ou concursos que presta? "Nem andar direito eu sei". Está cada dia mais sozinho e infeliz? "Nada mal para um cara que nem andar direito sabe". 

Foi assim que a vaidade a necessidade de viver para impressionar aos outros deu lugar a um niilismo e uma liberdade que ele nunca havia experimentado antes: a tranquilidade e a paz de se saber que não havia mais nada para se perder. 

E Carlos saiu do consultório médico. Andando errado. E sorrindo. 


sexta-feira, 27 de fevereiro de 2015

As fantásticas aventuras do maratonista Clodoaldo

Quem é de Palmeirinha provavelmente conhece ou já ouviu alguma história envolvendo o maratonista Clodoaldo. Matemático e corredor, tem o dom da palavra, é um notável contador de causos -- que muitos invejosos chamam maldosamente de inverdades. Clodoaldo exagera, carrega nas interpretações, aumenta aqui ou ali, mas, creio eu, sempre baseia suas narrativas em alguma situação cotidiana que de fato aconteceu. 

Sentado confortavelmente no Bar do Maninho, uma instituição boêmia sagrada da região, Clodoaldo repentinamente começa a descrever situações fantásticas. Ali ele se popularizou por uma proeza sobre-humana: da porta do boteco, jura que consegue enxergar sua mulher assistindo televisão na sala da sua casa, que fica num bairro bem mais distante, mais de 1 quilometro de distância da entrada do bar. É assim que Clodoaldo sempre saberia a hora exata de sair do bar e voltar para casa sem preocupar sua amada esposa. 

A história é realmente essa: o sujeito jura que, ao fixar bem o olhar, sua visão atravessa paredes, muros, casas, barrancos e entra em sua casa pela porta da frente e dá uma manjada na patroa que, despreocupada, assiste a novela. "Dá tempo de tomar a saideira", dizia, sempre sorrindo.  

Isso é apenas uma das histórias fantásticas sobre Clodoaldo que circulam pela Palmeirinha. O cara é um baú de causos, como da vez que enganou a mulher e tirou o cheiro de perfume barato de cabarezinho com bergamota, do seu método de beber água de cano estourado para não desperdiçar, do seu filho que com problemas graves de visão usava um tapa olho para "forçar o olho bom" e, talvez a mais clássica, de quando foi pagar uma promessa para Nossa Senhora e voltou com um tatu pronto para ser cozinhado. 

Durantes anos, centenas e centenas de pessoas já contribuíram para as histórias dessa figura. São causos que já fazem parte do folclore de Palmeirinha. As histórias vão passando de pai para filho, muitas vezes sendo alteradas. Outras originalmente não envolviam Clodoaldo, mas a ele foram atribuídas. Tarde demais. 

Hoje gostaria de lembrar de um causo da época em que Clodoaldo era maratonista do exército brasileiro, lá pela década de 70, e viajou com outros atletas-soldados para uma corrida em São Paulo. Era a primeira vez que nosso corredor disputava uma corrida na Terra da Garoa, onde depois iria fixar residência.

Utilizando sua liderança e sua capacidade de argumentação, Clodoaldo convenceu os chefes de sua equipe que o melhor era hospedar todo o time em um hotel 5 estrelas no coração da cidade. Agora passo a palavra para o próprio maratonista: 

"Meu amigo, cheguei lá e o hotel tinha mais de 30 andares. Rapaz, nem sabia o que fazer com tanto andar. Então chegamos no quarto do hotel e, meu amigo, era gigante. Aquilo era coisa boa. E tava ainda cheio de bebida naquela geladeirinha. Cheguei com sede né, e já me atraquei na bebida. Foi pá puf e deu. Depois que acabou eu mandei vir mais e depois mais ainda. Pessoal de São Paulo sabe tratar bem as visitas, eu pensava. 

Lá pelas tantas já tava meio baleado e fui dormir. Aquela cama maravilhosa me esperando, No que eu pisei no tapete, Deus do céu, que coisa mais macia, o pé afundava naquela coisa fofinha. Aquilo era coisa boa. Já tava mais pra lá do que pra cá e como o cansaço da viagem era grande, acabei não tendo forças para chegar até a cama e dormi no tapete mesmo, que era tão fundo e macio. 

No outro dia, depois da corrida, fiquei sabendo que a bebida não era de graça e que muitas dela eram importadas. Tudo seria cobrado da minha equipe. A conta ficou caríssima pra gente e a solução foi vender todo o armamento de nosso pelotão para dar conta das despesas. Essa tatuagem do Super Homem que eu tenho aqui no peito fiz depois disso, Era pra lembrar que como a gente não tinha mais arma, caso desse guerra eu ia ter que enfrentar as balas no peito mesmo, tipo o Super Homem, manja? 

Dai pra acabar, depois que pagamos, perguntei para a moça como que fazia para chegar até o rodoviária e ela me disse que era fácil, só pegar o ônibus 4767. Meu amigo, tu acredita que já eram seis da tarde do outro dia e eu tava no ponto de ônibus ainda, e só tinha contado 4007 ônibus que tinham passado por ali? Desiste de esperar pelo 4767 e chamei um táxi mesmo" 

Pode ser que o maratonista Clodoaldo não seja o herói que a Palmeirinha merece, mas com certeza ele é o que ela precisa. 

sexta-feira, 30 de janeiro de 2015

Agente da paranoia V

Olá, tudo bem? Meu nome é Alana e eu estou morta. Até aí tudo bem. A ruim de estar morta é que ninguém conversa com você e quando você tenta falar com alguém, nem olham na sua cara porque, tipo, você é um fantasma. É por isso que eu inventei um método para poder conversar com as pessoas. Um método que, modéstia à parte, o que tem de simples tem de engenhoso. Vamos chamá-lo de O método de como conversar com pessoas da Fantasma Alana. Trata-se do seguinte: sempre que eu me sinto sozinha e preciso conversar com alguém. procuro até encontrar alguém que esteja catatônico, daquele jeito meio apelermado que algumas pessoas ficam às vezes, quase um piripaque do Chaves, olhando para o nada com os olhos arregalados e a cabeça vazia. Tento me posicionar na frente da pessoa que tá tendo um ruim e fico ali paradinha, olhando para ela e falando sobre qualquer coisa. Contanto que a pessoa continue travada e eu continue ali falando, do meu ponto de vista é como se fossemos best friends e ela estivesse prestando maior atenção no que falo. E se a pessoa não mudar a expressão, não desviar o olhar e nem sequer piscar é como se ela não quisesse me interromper. É como se eu estivesse viva novamente. Na verdade, ganho até mais atenção do que quando estava viva. É o maior nível de atenção que já consegui ter em uma conversa.

Dois eventos sociais são os mais fácies de encontrar pessoas perdidonas assim: reuniões de condomínio e aulas de filosofia. Nas reuniões de condomínios é melhor porque as pessoas tentam disfarçar a catatonia olhando para o chão e então eu preciso apenas sentar no chão, em posição de índio, e conversar com a pessoa sobre meus medos ou meus sonhos. Já nas aulas de filosofia é diferente. Os alunos são mais discretos, geralmente eles paralisam olhando para cima e aí para conversar com eles olhando nos olhos eu preciso flutuar. Só que assim não gosto muito, me sinto muito fantasmona e não consigo focar na conversa. Também tem o professor né. Por um lado ele pode parecer a escolha mais óbvia: é só a aula terminar que ele tem um treco e fica com os olhos fixos numa direção só. Eu não gosto. Olha, não me levem a mal, moços, mas não quero ficar falando das minhas coisas pessoas para uma pessoa -- e digo isso com todo o respeito, falo assim jurando levantado o dedinho -- uma pessoa que tá menos viva do que eu. Dá uma coisa ruim. E se eu quero que meu teatrinho dê certo, preciso de alguém bastante vivo na minha frente, porque são assim que as fantasias funcionam, não é?

Eu reconheço que no momento que me posiciono diante da pessoa, tudo aquilo parece, sim, um pouco artificial. Mas assim que começo a falar, me sinto imersa numa conversa real: sorria se digo coisas alegres, fico um pouco irritada quando lembro das desgraças da vida, dou uma piscadinha se conto um segredo e fico mexendo no cabelo quando estou interessada na pessoa. Ruim é quando a pessoa sai da catatonia dela antes de eu terminar minha história. Grito, abano os braços, fico pulando e implorando que me deixe pelo menos terminar o pensamento, a história já está no final, por favor, gostei tanto de você, não me deixe aqui sozinha... Mais um que vai embora. Paciência. Assim com a mesma facilidade com que a pessoa desperta da catatonia, eu desperto da minha ilusão de conversa com os vivos. No final, acabo sempre ficando zomza e sem rumo certo, como um gato recém descido de uma cadeira gira-gira (sério, não tentem isso com os gatos de vocês). 

quarta-feira, 21 de janeiro de 2015

Agente da paranoia IV

"Pensamentos como esse fazem um homem meter uma bala na cabeça" -- a frase passou como uma lâmina pela mente de Jorge muitas vezes até que ele se desse conta da hora. Sozinho no apartamento, no meio da madrugada, depois de misturar alguns comprimidos com bebida, ele notou o quanto se tem a perder quando se trata do incompreensível. Na rua fazia um frio que não chegava a incomodar dentro do apartamento aquecido. O vento soprava na rua só de vez em quando. Sendo assim, nada no mundo teria força suficiente para fazer Jorge levantar e parar com as divagações. 

Seguiu com seus pensamento e acendeu mais um cigarro, o primeiro do segundo maço -- e ainda havia mais um. Normalmente ele pararia com o final do primeiro maço, mas nos últimos dias sentiu que o mínimo não lhe bastaria mais. Cadeira encostada na parede. Pés para o alto. Cabeça voltada para o teto. O pensamento voava longe. Voltou a si quando ouviu o interfone tocar. Era apenas a comida que havia pedido para entrega, 

O sabor da comida não era tão bom quanto sua aparência. De volta, novamente sozinho, rapidamente sua alma se transporta para um lugar distante dali. Parecia ser no outro lado da cidade. Numa casa que ele nunca viu. Um quarto que nunca conheceu. Que lugar era aquele? Como ele poderia estar ali agora? Uma cama que ele nunca deitou, sobre a qual havia alguém que já tinha sido emprestada a ele, mesmo que por alguns segundos, mas nunca havia lhe pertencido. Era Alana. A morta Alana. Nada daquilo era tangível, ele apenas imaginava. Enquanto isso o corpo nu da mulher, que antes era o que mais havia de concreto, parecia agora apenas mais um devaneio. Uma ilusão. Talvez fosse um sonho, talvez estivesse dormindo. 

Passou um mês desde que ele havia conhecido Alana, ou melhor: o fantasma de Alana. Meu Deus, obcecado por uma assombração, isso não pode fazer sentido -- dizia para si mesmo. Ele ainda não sabia nada sobre ela. Só que ela tinha fixação por um rosto masculino e que o desenhava várias vezes com caneta vermelha em folhas de papel. Foi quando pensou que a realidade não tão transparente assim como dizem. Poderia ser fácil para ele ir buscar o que queria de verdade. Era só terminar com os comprimidos. Mas não. Estava ali agora, sentado na cadeira e encarando um pedaço do teto. Corpo e alma separados. Apaixonado por uma assombração, por Deus, estou louco -- pensava. 

Um mês atrás, no meio da rua em um domingo movimentado, essa assombração foi algo real e puro. E durante alguns dias ele jurou poder vê-la às vezes na rua, no meio da multidão, dentro do ônibus que passava. E então ela sumiu. Sumiu de vez. Sumiu para sempre. Para ele o tempo perdeu o sentido e tornou-se relativo. Ficava aflito o dia todo, e assim poderia ficar semanas ou até um ano, se não soubesse algo sobre a moça morta. 

Hoje, ao final de 30 dias, está irreconhecível, com o coração pesado e indiferente a tudo ao seu redor. Era como se sua mente tivesse desistido do seu corpo. Até que recebeu uma ligação. Não era ela, e nem poderia ser: os mortos não telefonam. Era, no entanto, o detetive que havia contratado para saber mais da moça. De súbito, enquanto ouvia o relato do detetive pelo telefone, pôde ver novamente aquele casa, aquele quarto, aquela cama, aquela mulher. Uma imagem que ainda provocaria muitas noites intermináveis de fumo e comprimidos. 

A voz que saia do outro lado da linha passou a ecoar na mente dele. Ela contou tudo o que acontecera com a moça nos seus últimos dias de sua vida e o pensamento de Jorge ia sendo construído como um prédio que era levantado concreto a concreto. Alana fugiu, tempos antes do domingo que foi atropelada e que como assombração encontrou com Jorge. Fugiu depois de descobrir que estava com pneumonia. Os médicos estavam relativamente confiantes: a tendência era que a doença regredisse com o tratamento adequado. No entanto, uma infecção hospitalar tornou o caso de Alana irrecuperável. Prevendo o pior, a moça fugiu. Até que, naquele domingo, jogou-se em frente a um carro que passava veloz pela rua. 

-- Que triste final para uma pessoa. Isso é tudo? 

-- Não, a moça era casada. 

terça-feira, 20 de janeiro de 2015

Agente da paranoia III

Caroline tinha 22 anos e ainda morava com os pais. À primeira vista, não havia nada de especial nela, nada que merecesse ser destacado. Não fazia trabalho voluntário, nunca tinha ido doar sangue e tava cagando para esse papo de política. Típica patricinha moradora de condomínio, se não fosse por um gosto bastante peculiar: toda noite ela gostava de passear sozinha pela praia, de ficar lá sem mais ninguém, e nem era para ficar chapada. Ela gostava de fazer desenhos na areia. Pegava uma vareta ou o galho de uma árvore e desenhava enormes círculos por toda a areia. Era para algum anjo poder ver lá de cima, ela dizia. Isso começou quando Caroline tinha 14 anos. Foi quando ela se descobriu um pouco diferente das demais garotas da sua idade. Foi como o despertar de uma nova personalidade: passou a ter pensamentos próprios, diferentes daqueles que tinham caído no seu colo ainda menina. Limpou a mente das antigas bobagem e começou a pensar por si própria. Descobriu que a vida poderia ser mais do era e apostou todas as suas fichas no amor. Definiu que amar daria sentido à sua vida. Na maioria das vezes, tropeçou em relacionamentos complicados. Namorou quatro vezes e amou apenas uma, o seu último namorado. Depois dele, decidiu ficar mais exigente, mas sem deixar de acreditar no amor. 

A jornada para chegar onde está hoje foi longa. Tornou-se cética e um pouco cínica com quase tudo. Acreditava apenas em anjos e em almas-gêmeas. Cética, porém carente. Pensava que sua alma-gêmea poderia estar em qualquer lugar, poderia aparecer em qualquer momento, a qualquer hora. Poderia ser qualquer um, acreditava nisso. Transformou isso num tipo de obsessão, ao ponto de reparar em todos que podia, nem que fosse por apenas alguns segundos. Seu principal ponto de observação era o ônibus lotado. Foi lá que ela conheceu seu último namorado, o único que realmente amou. Por isso, sempre que subia em um ônibus lotado, ficava nervosa. Poderia acontecer de novo, aqui nesse ônibus. Por que não? Quem disse que um raio não pode cair duas vezes no mesmo lugar? 

Sua sensibilidade ia muito além dessa fixação com o amor. Em sua essência, ela era muito sensível. Sentia a dor das pessoas como se fosse nela mesma, como se as outras pessoas fossem partes dela. Embora nunca tenha feito nada a respeito disso, apenas suportava. Perdeu a virgindade cedo, aos 14 anos, com o primeiro namoradinho da escola. Queria que fosse especial, mas não foi. Assim é a vida, só isso, nada pode mudá-la radicalmente. Ela segue uma ordem, um destino. Foi então que começou a desenhar os círculos na areia da praia.  

Esse tipo de pensamento foi o que levou Carol - como todos a chamavam - a andar sem rumo pela orla à noite fazendo seus desenhos na areia. Ela gostava mais das noite de frio e de chuva, quando tudo estava mais deserto, quando não havia lá quase mais ninguém. Às vezes ela era confundida com uma prostituta, mas nem ligava para isso. Apenas ria e seguia seu caminho. Coragem ela tinha de monte. E é preciso muita coragem para andar assim pela praia quase deserta, no escuro e em meio à chuva. 

Ela esperava. Sentava na areia e tomava um ar. E então começava a fazer círculos e círculos na areia. Mesmo que nenhum anjo pudesse ver, mesmo que nada acontece, sentia que precisava continuar desenhando, como que por um desencargo de consciência. Às vezes se sentia meio burra, meio estranha, por que quem sabem anjos nem existissem e talvez ela só estivesse vendo filmes demais. Só que a busca dela ia além de contatos com anjos e de encontrar um grande amor. Carol queria pelo menos encontrar pistas, pistas de que existe algo maior do que ela. Aqueles desenhos poderiam não dar em nada, e provavelmente isso aconteceria, mas ela precisava acreditar que um arranjo cósmico semelhante ao que tomava conta de sua mente era possível também no mundo exterior, para que assim o mundo virasse um palco cheio de talentos e magia. Seus anjos e suas buscas pelo amor perfeito poderiam ser apenas uma desculpa para essa busca por algo maior e mais sublime. Um engodo criado para anestesiar, uma distração que pudesse conduzir até o objetivo verdadeiro: o inesperado que rompe o ciclo da vida. 

Ela estava nessa rotina desde os 14 anos até que o inesperado e a ruptura apareceram. Um daqueles homens nojentos que a tomavam por prostituta puxa seu braço na sua volta pra casa. Ele não era tão bonito, mas parecia confuso e muito, muito triste. Por alguma razão desconhecida Carol teve interesse. 

-- Pelo menos me diga o seu nome.

-- Meu nome é Escobar. 


domingo, 18 de janeiro de 2015

Agente da Paranoia II

As pessoas se amontoavam na rua para ver o que tinha acontecido. Dezenas de populares formavam um círculo procurando qualquer pista que tivesse: aconteceu um acidente? alguém foi atropelado? alguma morte? sangue? A rua estava tomada pelas pessoas e a ambulância não conseguia chegar até o local. Tipo de bagunça comum numa tarde de domingo em cidade grande. Jorge também teve curiosidade e chegou perto para averiguar. Fez apenas um esforço mínimo. Ao sair da confusão, olhando para trás, esbarrou numa moça que passava apressada. Derrubou todas as suas coisas. Por "coisas" diga-se: um caderno, umas dez folhas com desenhos -- que agora estavam espalhadas pelo chão -- e duas canetas vermelhas. 

Jorge não saberia descrever a expressão dela. Ela uma mistura de surpresa e raiva. Talvez ainda tivesse um pouco de indignação e frustração. Em todo caso, não era uma cara muito boa. A dele não era melhor. Jorge, por alguns momentos, ficou paralisado, sem saber o que dizer ou fazer. Foi o tempo que ele precisou para analisar a situação e o estrago que havia feito. 

Só então ele ajudou a moça recolher os papéis. Eram desenhos feitos com caneta vermelha, desenhos de uma pessoa, desenhos de um cara. Um ex-namorado, talvez, pensou Jorge. Ele não teve coragem de olhar nos olhos da garota ao entregar os papéis, com medo que ela cuspisse em seu rosto ou fizesse algo agressivo do tipo. Quando todos os papéis estavam recolhidos, Jorge finalmente a observou com calma: olhos grandes e escuros, cabelos castanhos-escuros até os ombros, corpo bastante magro, parecendo frágil, quase doente e um semblante jovem. Não era bonita. E, na verdade, nem precisa ser. Não precisava ser mais nada: não era importante sua personalidade, seu caráter, o seu jeito de falar, se o cara dos desenhos ainda era o seu namorado, nada importava. 

Jorge só queria conversar com ela. Mais do que isso: ele precisava conversar com ela. E foi assim que, sem jeito, pediu desculpas. Ela disse que estava tudo bem, sem nem ao menos olhar para ele. Jorge perguntou se poderia saber o nome dela. Alana, ela respondeu. Então ele perguntou se havia algo que ele pudesse fazer para diminuir a raiva que ela estava sentindo dele naquele momento. "Deu para perceber que eu estou bastante irritada, né? Mas não se preocupe que a culpa não é sua", e finalmente sorriu. Disse novamente que estava tudo bem e, para a frustração dele, ela apenas continuou seu rumo, como se nada demais tivesse acontecido, como se nem devesse estar ali. 

Não havia nada que ele pudesse fazer. Ela não queria ficar ali, não queria conversar e provavelmente estava bastante irritada. "Mesmo que ela me visse de novo, só iria querer ir para longe de mim o mais rápido possível", Jorge pensou. "Não tem jeito, ela vai ser apenas mais um devaneio da minha vida". Quando ia retomar seu caminho, ele viu que a finalmente a ambulância havia conseguido chegar até o local do acidente e os paramédicos recolhiam o corpo envolvido. Um carro havia atropelado uma pessoa na rua. A vítima: um corpo feminino bastante magro, parecendo frágil, quase doente, com um semblante jovem e com cabelos castanhos-escuros que iam até os ombros. Era ela. Alana estava indo embora, morta, carregada pelos paramédicos, enquanto a multidão se dispersava. Jorge correu até o local do acidente e, entre o sangue que manchava o asfalto, estava espalhado pelo chão um caderno, duas canetas vermelhas e umas dez folhas com o rosto de um homem desenhado. 

Jorge sorriu e disse: 

-- Pelo menos a culpa não foi minha. 

sábado, 17 de janeiro de 2015

Agente da paranoia

Escobar estava dias se arrastando pelo apartamento quase vazio desde que ela se foi. As vinte e quatro horas do dia e os sete dias da semana pareciam passar muito mais depressa. As noites nunca mais foram produtivas. Quando ele se deu conta, já tinham se passado meses ou anos, com os mesmos sonhos, as mesmas pessoas, as mesmas perspectivas. Até descobrir que não conseguia mais sentir o cheiro dela no apartamento. Antes o cheiro dela era mais do que um detalhe: era uma desculpa. Ele poderia caminhar numa rua movimentada, ondo todos os cheiros do mundo fossem sentidos, e ainda assim ele perceberia o dela. Mas isso é o tipo de coisa que acaba quando se segue em frente. E Escobar seguiu em frente. 

Ele seguiu em frente e dizia que ainda tinha esperanças, que as coisas, pelo menos no discurso, iriam melhorar. É o tipo de pensamento ao qual pessoas de mente pequena se apega. Escobar era esse tipo de gente, de mente pequena. 

Porém não era sempre assim. Ninguém consegue ser forte assim todos os dias e noites e, principalmente, nos sonhos. A realidade parecia se inverter assim que Escobar fechava os olhos, pois só então as coisas começavam a fazer algum sentido. 

-- A vida é essa, o mundo terá sempre o mesmo tamanho, o círculo permanecerá. 

Tentando romper com o círculo, Escobar decidiu sair do apartamento quase sem mobília. "Preciso", ele disse para si mesmo. Saiu de casa com a roupa que estava no corpo e andou. Trocou de cenário sem nem ao menos sentir o movimento dos pés. Não conhecia aquele bairro, não sabia onde estava, mas seus pés continuavam a percorrer o caminho sem se importarem com sua vontade. Escutou uma música que vinha de um bar. Não deixou sua mente decidir. Já estava lá mesmo, já era parte do jogo. O vento batia em seu rosto, quebrava em seu corpo. Tocava um hip hop que não deixava espaço para melodias melancólicas.

Escobar entrou no bar. Não sabia onde estava e não conhecia ninguém. Estava sozinho, em um lugar que não conseguia identificar muito bem. Mas nunca tinha se sentido tão bem, a música ecoava dentro de sua cabeça: um hip hop bem baixinho...

Muitas vozes ao redor, um cheiro de cigarro, cadeiras espalhadas de forma desorganizada, rodeando as mesas também espalhadas sem nenhuma ordem pelo bar. Escobar sentou-se em uma das cadeiras. Todos se divertiam, ou pelo menos pareciam se divertir, entre conversas, cochichos e um pouco de grito. Um rapaz estava sentado sozinho bem a frente da mesa de Escobar. Com uma cadeira vazia ao lado e tendo apenas uma mochila como companhia. 

Para ele isso nem parecia importar. Na verdade ele não estava nem aí. Somente seu corpo pesado e sua mão inocente, que vez outra levava o copo à boca para beber a cerveja. Escobar queria saber o que se passava na cabeça daquele rapaz. Nunca saberia com certeza, mas imaginar era possível, bastava prestar atenção em sua fisionomia: as pálpebras baixas, os olhos olhando para chão, enxergando não o concreto do piso, mas um passado ou talvez um futuro possível. 

Talvez nesse futuro uma garota chegasse e sentasse na cadeira vazia ao seu lado. Bebia com ele e ria de uma forma que fazia seus cabelos semi-encaracolados dançarem no ar. Não mais um, mas dois copos estariam naquela mesa, o silêncio não existiria e pensar não faria parte daquele mundo. Escobar conseguia ver tudo isso. 

No bar, a cadeira ocupada pelo rapaz agora estava vazia, assim como a mesa e a cadeira ao lado, assim como todo o resto do bar. Escobar estava sozinho no bar e não sabia o que havia acontecido. Era preciso analisar os detalhes. As mesas e as cadeiras seguiam espalhadas sem ordem pelo bar. No fundo continuava tocando baixinho um hip hop. Escobar olhou para sua mesa mais de perto. E agora sim, uma resposta. O detalhe necessário. Na umidade da mesa, bem de perto, foi possível ver um círculo formado pela água que escorreu do copo gelado, mas que formava um único circulo na mesa. Um círculo. 

Foi só então que Escobar acordou.