"Pensamentos como esse fazem um homem meter uma bala na cabeça" -- a frase passou como uma lâmina pela mente de Jorge muitas vezes até que ele se desse conta da hora. Sozinho no apartamento, no meio da madrugada, depois de misturar alguns comprimidos com bebida, ele notou o quanto se tem a perder quando se trata do incompreensível. Na rua fazia um frio que não chegava a incomodar dentro do apartamento aquecido. O vento soprava na rua só de vez em quando. Sendo assim, nada no mundo teria força suficiente para fazer Jorge levantar e parar com as divagações.
Seguiu com seus pensamento e acendeu mais um cigarro, o primeiro do segundo maço -- e ainda havia mais um. Normalmente ele pararia com o final do primeiro maço, mas nos últimos dias sentiu que o mínimo não lhe bastaria mais. Cadeira encostada na parede. Pés para o alto. Cabeça voltada para o teto. O pensamento voava longe. Voltou a si quando ouviu o interfone tocar. Era apenas a comida que havia pedido para entrega,
O sabor da comida não era tão bom quanto sua aparência. De volta, novamente sozinho, rapidamente sua alma se transporta para um lugar distante dali. Parecia ser no outro lado da cidade. Numa casa que ele nunca viu. Um quarto que nunca conheceu. Que lugar era aquele? Como ele poderia estar ali agora? Uma cama que ele nunca deitou, sobre a qual havia alguém que já tinha sido emprestada a ele, mesmo que por alguns segundos, mas nunca havia lhe pertencido. Era Alana. A morta Alana. Nada daquilo era tangível, ele apenas imaginava. Enquanto isso o corpo nu da mulher, que antes era o que mais havia de concreto, parecia agora apenas mais um devaneio. Uma ilusão. Talvez fosse um sonho, talvez estivesse dormindo.
Passou um mês desde que ele havia conhecido Alana, ou melhor: o fantasma de Alana. Meu Deus, obcecado por uma assombração, isso não pode fazer sentido -- dizia para si mesmo. Ele ainda não sabia nada sobre ela. Só que ela tinha fixação por um rosto masculino e que o desenhava várias vezes com caneta vermelha em folhas de papel. Foi quando pensou que a realidade não tão transparente assim como dizem. Poderia ser fácil para ele ir buscar o que queria de verdade. Era só terminar com os comprimidos. Mas não. Estava ali agora, sentado na cadeira e encarando um pedaço do teto. Corpo e alma separados. Apaixonado por uma assombração, por Deus, estou louco -- pensava.
Um mês atrás, no meio da rua em um domingo movimentado, essa assombração foi algo real e puro. E durante alguns dias ele jurou poder vê-la às vezes na rua, no meio da multidão, dentro do ônibus que passava. E então ela sumiu. Sumiu de vez. Sumiu para sempre. Para ele o tempo perdeu o sentido e tornou-se relativo. Ficava aflito o dia todo, e assim poderia ficar semanas ou até um ano, se não soubesse algo sobre a moça morta.
Hoje, ao final de 30 dias, está irreconhecível, com o coração pesado e indiferente a tudo ao seu redor. Era como se sua mente tivesse desistido do seu corpo. Até que recebeu uma ligação. Não era ela, e nem poderia ser: os mortos não telefonam. Era, no entanto, o detetive que havia contratado para saber mais da moça. De súbito, enquanto ouvia o relato do detetive pelo telefone, pôde ver novamente aquele casa, aquele quarto, aquela cama, aquela mulher. Uma imagem que ainda provocaria muitas noites intermináveis de fumo e comprimidos.
A voz que saia do outro lado da linha passou a ecoar na mente dele. Ela contou tudo o que acontecera com a moça nos seus últimos dias de sua vida e o pensamento de Jorge ia sendo construído como um prédio que era levantado concreto a concreto. Alana fugiu, tempos antes do domingo que foi atropelada e que como assombração encontrou com Jorge. Fugiu depois de descobrir que estava com pneumonia. Os médicos estavam relativamente confiantes: a tendência era que a doença regredisse com o tratamento adequado. No entanto, uma infecção hospitalar tornou o caso de Alana irrecuperável. Prevendo o pior, a moça fugiu. Até que, naquele domingo, jogou-se em frente a um carro que passava veloz pela rua.
-- Que triste final para uma pessoa. Isso é tudo?
-- Não, a moça era casada.
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