Se eu fizesse uma lista das coisas que mais amo e que mais sinto falta do interior, certamente que ocuparia o topo desta lista os xingamentos. Ninguém xinga com tanto estilo quanto um jovem adulto do interior. Em Porto Alegre os xingamentos são sempre politizados, são sempre para mostrar que você é mais culto e sábio (e mongo) que seu adversário. São xingamentos do tipo: reaça, esquerdopata, feminazi, coxinha. Sem graça. Falta a manha, falta ousadia e a malandragem do xingamento do interior. Permitam-me dar um exemplo. Tinha acabado de chegar de viagem, quando um amigo veio me visitar e disse bem empolgado: foi pra capital e esqueceu dos amigos, seu arrombado. ARROMBADO. De todas as palavras possíveis para me chamar, ele utilizou essa: arrombado. Não se escuta um xingamento tão bonito como esse pelas ruas de Porto Alegre. Claro que aquilo foi o jeito do meu amigo dizer que estava com saudades de mim (a amizade masculina é realmente tocante). O cenário muda completamente quando a ofensa é dita a um estranho.
Em toda a nossa gramática, nós podemos encontrar pouquíssimos xingamentos tão ofensivos quanto "arrombado". Ele está quase no final da escalada do pico da pior ofensa. Quando proferido a sério, desfaz qualquer sinal de sorriso e transforma qualquer estranhamento naquele clima quente pré-briga. Aqui no interior, o "arrombado" funciona como um pré-soco na cara e substitui aquilo que vocês aí da capital utilizam com frequência: o empurrão que antecede a porradaria. Aqui a palavra tem uma função quase interjectiva. Assim como "pare" faz alguém interromper sua ação e "pega" faz com que o cão inicie a perseguição, o "arrombado" funciona como um estimulo elétrico aplicado direto nos nervos dos braços e das pernas, fazendo-as se mover rapidamente, em forma de socos e pontapés, em direção ao corpo do ofensor. Trata-se de uma daquelas ofensas sem volta que podemos encontrar na língua portuguesa. Ninguém pode ponderar depois de ser chamado de arrombado. Você não pode parar e pensar "hum, talvez ele não quis dizer isso que disse". Assim como você não pode se desculpar depois de chamar alguém de arrombado ("desculpa, cara, eu não quis dizer que sua mãe é arrombada"). Depois que o "arrombado" é proferido, estamos diante de uma daquelas situações kafkianas que não permitem volta. O arrombado só deixa uma alternativa ao ofensor e ao ofendido: a briga, que só terminará quando uma das partes envolvidas estiver inconsciente.
É por isso que, aqui no interior, não existe prova maior de amizade do que chamar o amigo de arrombado, sabendo que tudo vai ficar bem porque os dois são amigos e nunca um atacaria o outro. E é por isso também que chamar um desconhecido de arrombado e escapar das consequências é realizar uma façanha tão incrível quanto botar a cabeça dentro da boca de um leão ou saltar com uma moto por dentro de um círculo de fogo. E isso me faz lembrar do antigo mecânico que trabalhava para o meu pai na sua loja de peças agrícolas. Seu nome era Loide.
O fato é que o mecânico Loide, no auge da genialidade de quem passou a vida todo no interior, inventou um método que permitiu que ele fosse capaz de xingar seus chefes (no caso, meu pai e seu sócio) de arrombados sem sofrer qualquer retaliação. Eu nunca entendi porque o mecânico Loide fazia tal coisa. Talvez ele quisesse se vingar secretamente de imposições e menosprezos que sofria sistematicamente no trabalho. Ou talvez fosse apenas pelo lindo vandalismo puro. De qualquer forma, Loide tinha um engenhoso esquema. Vou explicar.
Durante uma época, a simpática loja do meu pai estava sofrendo uma série de arrombamentos, em que se concluiu que o ladrão agia ou por loucura ou por esporte, já que nenhuma das vezes roubou alguma coisa. Ele só violava fechaduras, trincos, travas e fechos. O guardinha da rua que se chamava Diógenes, um sujeito que vivia bêbado e que me ensinou, quando eu era criança, a atirar (sério), criou para o ladrão a identidade secreta de O Arrombador.
Com o tempo, todos os prejudicados pelas ações do bandido concordaram em chamá-lo de O Arrombador. O mecânico Loide era sempre o primeiro a se oferecer a ajudar a investigar, responder perguntas e a encontrar o responsável. Foi observando seu comportamento numa dessas ocasiões que eu descobri que ele na verdade estava por de trás do Arrombador e me dei conta de seu genial método para chamar seus chefes de arrombados. Um desses diálogos aconteceu quando eu e meu pai entramos na loja logo depois de um dos arrombamentos. Meu pai estava desesperado pensando que algo de valor tinha sido roubado:
- Meu Deus do céu Loide, espero que nada tenha sido danificado.
Eis a resposta do mecânico:
- O cofre foi, arrombado.
Meu pai ficava sem entender:
-Oi?
E o mecânico completava magistralmente:
- O cofre foi arrombado, chefe.
Meu pai corria logo para o cofre para conferir e encontrava o cofre arrombado, mas nada de dentro dele havia sumido. É dessa forma que o mecânico Loide, o maior gênio do mal que eu já tive a honra de conhecer nessa minha vidinha, utilizava a sutil diferença provocada pela pausa de vocativo para impor ao seus chefes essas pequenas humilhações secretas. O plano não seria tão fácil de ser realizado se Loide não trabalhasse no local, tendo, dessa forma, acesso fácil a todas as chaves, lugares e senhas. Nunca nada de valor era roubado e ninguém sofria consequência material alguma, além do medo de todos os empregados que pensavam que estavam lidando com alguma força superior, algum tipo de punição divina ou como se o próprio diabo habitasse aquela pequena loja de peças agrícolas.
Um dia uma janela que sempre era trancada no final do expediente de trabalho amanheceu estranhamente aberta. O guarda Diógenes bateu na porta da minha casa, que era ao lado da lojinha, para avisar do ocorrido. Como meu pai estava viajando, minha mãe foi ver se tudo estava bem na loja que garantia o pão em nossa mesa. E eu fui junto porque não podia perder essa oportunidade de ver a genialidade do mecânico Loide em ação.
Dito e feito. Loide já estava por lá. Minha mãe já foi logo perguntando:
- Graças a Deus, parece que nada foi roubado ou quebrado de novo.
- Só a janela, arrombada.
- Como?
- Só a janela foi arrombada, senhora.
- Ah, sim, ainda bem que foi só a janela mesmo.
Por alguma razão, esses xingamentos subliminares parece que se alojaram de alguma forma na alma dos meus pais, que passaram a cada vez mais tratar o mecânico Loide com mais respeito e afeto. Chegaram até a convidá-lo a passar uma ceia de Natal conosco. Loide apareceu completamente bêbado e com uma puta gorda que fedia muito, mas essa já é outra história. Durante esse tempo, era sempre assim que se começa um dia de trabalho normal na antiga lojinha do meu pai:
- Arrombado!
- Como é que é?
- Cofre arrombado de novo, chefe.
- Merda!
Essa é a história do mecânico Loide, o arrombador de loja que ao invés de roubar valores materiais, roubava, sem ser percebido, a dignidade de seus superiores. Meu pai sempre ficava ali parado, sem reação, sem nada entender, perplexo na sua lojinha arrombada e iluminada pela primeira luz da manhã. E é por tudo isso que para todo o sempre o mecânico Loide será o meu gênio maligno, o meu supervilão, preferido.
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