Como todo mundo na pequena Ijuí está cansado de saber, há duas formas socialmente aceitas de se tirar um esparadrapo de um machucado: a maneira feminina, que lembra a depilação com cera quente e que aposta na longa duração, diminuindo a intensidade da dor; e a maneira masculina, que segue o método de retirar adesivos, focando na baixa intensidade, apesar da alta duração da dor. Claro que essa divisão binária poderia ser dividida em mais umas dezenas de partes, mas isso não é aqui necessário. O fato de conter apenas duas partes não torna o fenômeno simplista, já que não há nada de errado com o número dois e, de fato, aqui o caso se divide em dois. Para uma realidade simples devemos utilizar uma linguagem igualmente simples. É claro que não é fácil -- se é que é possível -- usar esse tipo de informação para categorizar pessoas, como se quem optasse por uma maneira de retirar o esparadrapo fosse necessariamente, em todos os mundos possíveis, optar por essa maneira, e quem optasse pela outra, escolhesse sempre a outra. As próprias definições de masculino e de feminino - nas quais se apoiam as noções de depilar e de descolar - já não são tão fixas como já foram.
No entanto, o detetive Paulo Rudi acreditava que sim, acreditava que podia determinar, apenas pela maneira que alguém tira um esparadrapo de um machucado, tipos de pessoas diferentes. Se no meio de uma investigação, ele visse um suspeito retirando um curativo ou um band-aid com todo o cuidado do mundo, aquele ato era visto como um reflexo da psicologia do suspeito e logo era interpretado como uma pista: o sujeito era frio, minucioso e suportava horas de interrogatório sem entregar nada. Não se tratava de uma pista quente, definitiva, mas era um detalhe que podia revelar o todo, um detalhe que se filtrado por uma mente aguda poderia ser muito útil. E o detetive Rudi se sentia muito esperto e especial com esses pequenos raciocínios. Era evidente que o verdadeiro trabalho investigativo, aquele que realmente soluciona casos, estava muito longe desses joguinhos mentais. Na verdade, as grandes evidências não precisam de nenhuma operação mental sofisticada, era só deitar o olhar, coisa que qualquer estudante de epistemologia social seria capaz de fazer. Mesmo assim, o que ocupava 90% do tempo do detetive eram esses experimentos mentais quase inúteis, que preenchiam quase que totalmente seu caderninho de informações. Não era isso que fazia Paulo Rudi ser um detive, mas era isso que o fazia sentir-se um detetive, e para ele era isso o que importava, tanto que usava uma capa bege, um óculos pendurado com fio no pescoço, um chapéu parecido com o do Chaves e fumava sempre um cachimbo, o que o fazia parecer uma criança brincando de detetive.
Para não parecer um maluco, para fundamentar esses seus pequenos juízos o detetive Rudi criou várias teorias em sua cabeçona de moranga. Dessa forma, o que surgia como uma dedução ad hoc, se se mostrasse frequente e de alguma forma útil, entrava para um rol de traços psicológicos das pessoas em geral, que possibilitava a construção de arquétipos humanos a partir de características psíquicas básicas. A totalidade destes arquétipos Paulo Rudi chamava de Contradição da Linguagem. No caso do esparadrapo, Rudi jogava com duas tendências do pensamento humano frequentemente opostas: o ver fenomenológico continental e a racionalidade dedutiva analítica. Essa divisão entre Continental e Analítico pode até ser confusa. Rudi sabia disso. No entanto, o detetive conseguia inclusive unir os dois lados no fenômeno universal que é a monguice.
O caso do esparadrapo não era o único, mas foi ele que fez Rudi ganhar fama e virar motivo de piada entre os colegas da Associação de Detetives do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul, que passaram a se referir aos palpites meio malucos do detetive como "combos", numa alusão aos combos de lanches ruins que as senhorinhas vendiam pelas ruas de Ijuí e que a vida corrida de detetive obrigava todos a comerem: o sanduíche natural sempre acompanhava o suco de laranja, o dogão sempre vinha com aquela Coca quente. Mas para sermos justos aqui com os combos do detetive Rudi, temos que dizer que hoje em dia cada vez mais os hábitos e as preferências das pessoas estão se agrupando em blocos inseparáveis, como se estivessem coladas umas às outras, de tal forma que a partir de um único dos inúmeros itens componentes de um gosto pessoal é possível intuir quase todos os outros, como se fossem estrelas um pouco afastadas na pior constelação do universo. Vendo por esse lado, o detetive Rudi não era de todo ridículo. Provavelmente o detetive estava certo no espírito do seus combos, mas talvez errasse em sua aplicação em razão do seu critério interno de organização: a contradição da linguagem.
De qualquer forma, Rudi estava agora diante do seu mais importante caso. Um caso que, se resolvido, acabaria com todas as chacotas feitas pelos colegas da Associação. Para começar a investigar tal caso, o detetive Paulo Rudi teve que lançar mão do seu mais impressionante disfarce: o de professor universitário de filosofia benjaminiano.
CONTINUA...
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