domingo, 12 de janeiro de 2014

A contradição da linguagem - parte II

"Filho de uma cadela", gritou Ramiro cuspindo ao ver que o cliente da mesa nove havia saído da cantina sem pagar pela coxinha de frango que havia consumido. O grito pode ter sido um pouco exagerado, mas o sentimento era merecido, afinal Ramiro dedicava toda a sua atenção e fazia de tudo para que a Cantina Dois fosse a mais acolhedora de todo o campus. Ramiro também mimava tanto os clientes que só faltava se despedir deles com um abraço depois que as contas eram pagas. Era assim que Ramiro era: um boa praça, um sujeito legal. Um tipo que se vê cada vez menos hoje em dia e que chegará um tempo em que não veremos mais, dada a a situação cada vez mais dominante hoje que faz o jovem incapaz de expressar simpatia, de dar calorosos e verdadeiros abraços, de olhar com ternura nos olhos e de sorrir aberto e sem receios, seja esse jovem comunista engajado, direitista reacionário, hippie bissexual pós-estruturalista ou analítico de shopping. 

Já Ramiro, o bom sujeito, fazia questão de sempre ser certinho. Terminava a missa de domingo e ele, ao estilo de um vereador em passeata, saia saudando todo mundo, até as imagens santas, sem nunca perder o sorriso do rosto, sua marca registrada. "Tudo joia?" "E a família como vai?" "A vó tá bem?". Ramiro era um cara tão gente boa, mas tão gente boa, que uma vez foi convidado para comer uma pizza na casa de um amigo, e, na pressa ao morder a pizza, acabou comendo um pedaço do guardanapo, o que todos viram. Ramiro passou o resto da noite elogiando e dizendo que aquele tinha sido o melhor guardanapo que ele já comera. Ramiro era tão gente boa que sempre que podia contribuía com a sua simpatia e seu sorriso no rosto em qualquer recepção. O cara era tão gente boa que atendia bem os clientes até quando eram clientes de outro estabelecimento e não de sua cantina universitária, como da vez que, na praça de alimentação do shopping, passou de mesa em mesa cumprimentando os cliente e perguntando se eles estavam bem servidos ou se desejavam algo mais; "Qualquer coisa que não esteja do seu agrado, pode falar diretamente comigo, tá bom? E a vó melhorou?". 

Por tudo isso havia como que um contrato social vigente em Ijuí e que definia que ninguém nunca deveria tentar prejudicar a Cantina Dois do boa-praça Ramiro. Talvez o universitário caloteiro da coxinha de frango não conhecesse o homem e sua fama e, por isso, cometeu o erro que muitos acabam cometendo: o de julgar pela aparência. De fato, a aparência de Ramiro não combinava com sua personalidade. Ele era gordinho, de pele clara e reluzente, sobrancelhas grandes e destacadas, bigode fino e um pouco de cavanhaque embaixo do queixo. Em suma, parecia o próprio diabo - só que loiro, bem loiro. Mas essa possibilidade só irritou Ramiro ainda mais. Primeiro porque ele sempre fez questão de, apesar de sua aparência, ser durante toda a sua vida um homem fino e delicado, quase uma menina. E, segundo, mesmo não sabendo quem era o cliente da coxinha de frango (são tantos estudantes indo e vindo numa noite de aula no campus), tinha certeza que havia tratado esse universitário feito uma princesa.  Tinha até perguntado, já que o universitário estava lendo, se ele não queria que o volume da televisão fosse diminuído, aumentando assim o aconchego de sua leitura. Depois de ir, sem sucesso, até a saída da cantina atrás do estudante, Ramiro estava agora no caixa, puto da vida, vermelho de indignação (o que se destacava muito em seu rosto tão branco) e tentava obter da garçonete Rúbia pistas do paradeiro do pilantra. 

- Seu Ramiro, limpa o cavanhaque, tá com babinha. 

- O pano, por favor, Rúbia, 

- Toma aqui. O pessoal da mesa oito disse que ele estava lendo um livro grande, grosso e que parecia estar em alemão. Cante, Canti, Conte, algo assim era o autor. Deve ser coisa das ciências humanas, aquela turma de maconheiros. 

- Tinha que ser alemão! Tudo de ruim que acontece no mundo, se a gente for ver, tem alemão metido. Tudo! 

- Mas ninguém sabe o nome dele, não, seu Ramiro. 

Uma rápida pesquisa na internet fez Ramiro descobrir que o ladão de coxinhas de frango estava lendo a  versão original em alemão da Crítica da Razão Pura de Immanuel Kant. Já era um começo e o dono Cantina Dois da Unijuí não iria descansar até colocar as mãos no vagabundo. 

- Então, Rúbia, tudo que a gente tem é o nome de um livro: Crítica da Razão Pura. 

- Ai que bom, seu Ramiro! Então a gente pode, ao invés de fazer um retrato falado e colar nos postes, sair pelo campus perguntando quem já leu a Crítica da Razão Pira. Facilita

- Pura! Crítica da Razão Pura! 

- Aie, tá bom. 

- Querida, vá até a biblioteca central e veja quantos exemplares desse livros temos disponível aqui pelo campus. E depois espalhe pelo campus que eu darei mil reais de recompensa para quem me der pistas do dono do livro. 

- Mas, seu Ramiro, e se for um livro famoso e tiver muitos exemplares pelo campus? 

- Te vira, porra! 

Irritado, como nuca havia ficado, Ramiro tirou um lenço de papel do bolso e secou o suor que escorria pela sua testa, mas estava com tanta raiva que amaçou o lenço numa bolinha e jogou no chão. Lastimava que houvesse no mundo um ser humano capaz de enganá-lo, ele que era tão bom e puro feito uma criança. Depois do final da noite de trabalho e enquanto jantavam na cantina vazia, Ramiro e a garçonete Rúbia já haviam feito todas as conexões que eram capazes de fazer e não pareciam sair do lugar. Ele, enquanto comia sua sobremesa, só pensava em dar seguimento ao seu elaborado plano de vingança. Logo concluíram que o caso era complicado e necessitava de trabalho profissional. Foi então que Rúbia lembrou que no mural do Prédio F havia colado um folder com o telefone de um detetive particular; "Detetive Paulo Rudi, se não me engano". 

A garçonete correu e logo voltou com o número do telefone do tal de detetive. Com o número em mãos, Ramiro fez a ligação que mudaria para sempre a história do curso de graduação em filosofia da pequena Unijuí: 

- Alô. Detetive Paulo Rudi? Ramiro, da Cantina Dois da Unijuí. Tudo bem? Que bom. A família como tá? Maravilha. É o seguinte, meu amigo: um estudantezinho aqui da universidade saiu sem pagar a coxinha de frango e eu quero contratar os seus serviços, pode ser? Era homem. Endereço dele? Não temos. Na verdade só temos o nome de um livro: Crítica da Razão Pura. O senhor vai ter que começar por aí. Não, não faço ideia do paradeiro dele. O senhor consegue encontrá-lo? Hã? Contradição do que? Contradição da linguagem? A contradição da linguagem vai levar até o bandido? Se o senhor tá falando, né... Mas assim, detetive Rudi, eu não quero que o canalha seja preso. Veja bem, cadeia é pouco para quem usufrui de nossa hospitalidade e sai sem pagar. Meu plano é o seguinte, caro detetive Rudi: eu tenho um sobrinho meio mala, terceiro semestre de sociologia, e meu plano é descobrir quem é o caloteiro para mandar esse meu sobrinho, de mala e cuia, jantar uma noite na casa dele, que é pra ele sentir na própria pele a humilhação que eu tô sentindo, sabe? Você sabe como chegar no campus? Hum, terá que vir disfarçado? O senhor é bom mesmo, detetive Paulo Rudi. Mas vem cá, essa tal contradição da linguagem funciona mesmo? Ela vai explicar o meu caso da coxinha de frango? 

Do outro lado da linha, vinha a voz fria e confiante do detetive Paulo Rudi:

- Meu amigo, a contradição da linguagem explica tudo. TU-DO. 

CONTINUA...

Nenhum comentário:

Postar um comentário