Por mais qualificado que seja o corpo docente de um PPG e por mais que seu corpo discente seja formado por estudantes capazes de escrever teses mais longas e chatas que o jejum de títulos do Grêmio, analíticos capazes de analisar analiticamente até o cu mistico de primeiro Wittgenstein, fenomenólogos capazes de escrever frases incompreensíveis até para David Lynch, hegelianos capazes de defender, acusar, julgar e condenar o parágrafo XII de um texto sobre o parágrafo XIV da Fenomenologia do Espírito e argumentadores capazes de argumentar e refutar os próprios argumentos enquanto argumentam, tudo isso não significa nada se entre eles não houver o professor paga-pau que não perde uma chance de elogiar seus alunos, seja depois de uma observação em aula, seja por que o cara soube combinar perfeitamente a meia branca esportiva com o tênis e a calça.
É claro que estamos falando aqui de nosso filósofo preferido em todo o mundo: o professor Tim. O professor Tim só tem duas certezas nessa sua vida mocoronga: a ética é a filosofia primeira e a melhor forma de organizar as mesas na sala de aula é colocá-las formando um U no centro da sala. As mesas em U, como todos deveriam saber, é a bosta em matéria de mesas e só pode combinar com uma aula de bosta. As mesas em U numa sala de aula é uma ideia tão tosca que logo que alguém começa a organizar a sala de aula, as mesas já vão olhando para as cadeiras e perguntando: "vem cá, não querem vocês, só hoje, serem as mesas e a gente fica de cadeira?". Podem apostar que se um dia as mesas fizerem uma greve, o fim das mesas em U estaria no topo da lista de exigências. Conhecida entre garções e donos de bar como o lixo das mesas, a organização das mesas em U é a principal causa de depressão entre mesas. Elas ficam tão tristes que sempre que alguma bebida alcoólica é tombada em cima delas, se apressam em sugar todo o líquido para esquecerem logo que estão organizadas de uma forma tão ridícula. Não é a toa que a organização em U das mesas é a que mais se parece com um cocô e que os alunos que chegam atrasados para aula do professor Tim, para evitar correr uma São Silvestre só para achar um lugar para sentar, resolvem dar meia volta e ir embora logo que entram na sala. Eu só consigo pensar em duas circunstâncias em que a organização das mesas em U numa sala de aula estaria justificada: 1- se os alunos começassem a brincar de telefone sem fio no meio da aula e 2- se uma organização de mesas em C fosse feita logo ao lado, deixando bem visível no meio da sala de aula a imponente sílaba CU.
No entanto, não é em todos os aspectos que a organização das mesas em U é horrível, pois ela é muito útil para a atividade preferida do professor Tim: o elogio rasgado, a pagação de pau sem limites. E isso se dá porque o professor Tim não se contenta em apenas elogiar, ele quer olhar para o rosto do aluno elogiado, tipo aquele namorado que curte gozar olhando nos olhos da namorada. Tim gosta de fazer valer o seu momento de elogio e quer também que todos vejam como ele é legal e humildão.
E era justamente esse aspecto da personalidade do professor Tim que Adriano tanto apreciava, o que o fazia, inclusive, simpatizar com a organização das mesas em U. Desde o momento em que Adriano entrou numa sala de aula e assistiu uma aula dada pelo professor Tim, sua vida nunca mais foi a mesma. No momento em que seu comentário acaba de sair de seus lábios, ele já escuta de volta algum elogio cara de pau do professor. Antes suas opiniões eram comuns, banais e sem importância, mas na aula do Tim, tudo o que ele falava se tornava um acontecimento. Tim elogia mesmo, desde as palavrar utilizadas para formar o raciocínio até a suposta escolha na tradução de um termo em alemão que ninguém sabia de onde saiu. O problema é que Tim é viciado em elogio. Assim que faz o primeiro, não consegue mais parar de elogiar e sente uma necessidade incontrolável de elogiar todo mundo. No primeiro elogio da aula são só risos e alegrias, mas já no quinto ou sexto os alunos novatos começam a se perguntar se não há nada de errado com o simpático profe e nem sequer esboçam mais um risinho. Pensam que é problema com bebida e que o professor Tim está passando por uma desintoxicação e, como fumantes que se viciam em chiclete depois de lagar o cigarro, o seu professor está substituindo o vício em álcool pelo vício em elogio: "Essa tua questão toca no nervo do problema, só você para pensar nisso, Moisés", "Gustavo, mais uma vez você nos brinda com uma observação única sobre a desconstrução no direito", "Felipe, você tem malhado? Tá com os ombros largos". E nem adianta tentar fugir depois do comentário ou da pergunta, pois não importa o que aconteça, o professor Tim vai até o inferno, se for preciso, para elogiar seu aluno. Para onde quer que o aluno participativo se dirija depois da aula, cedo ou tarde, lá estará o professor Tim para elogiar sua colocação deveras pertinente e única. Se, saindo da sua aula, o professor Tim avistar em alguma sala de aula algum professor ou algum aluno falando, ele, transbordando simpatia e com um sorrisão em sua cara gorda, interrompe a tal aula para elogiar o que está sendo dito, o que todos reagem conforme manda a etiqueta.
Para esses elogios intermináveis, a organização das mesas em U é o terreno perfeito para o professor Tim, o Carro-Velho da PUC, o nosso Rei do Elogio. E isso porque assim ele pode aproveitar totalmente o clima de euforia ébria de um momento de elogio. Seu maior sonho é começar a elogiar o primeiro aluno sentado no U e terminar no último, elogiando cada um pela sua alteridade, como se fosse um recordista tentando entrar para o Livro dos Recordes. Mas uma coisa nós temos que admitir: o professor Tim tem mesmo sua platéia na palma de sua mão. No final da aula, todos saem eletrizados por uma energia que não se encontra nas demais aulas de filosofia, pois só espíritos livres e superiores, que realmente se preocupam com a alteridade, podem criar esse cenário -- ou, talvez, essa figura seja apenas um louco de hospício. O fato é que a organização das mesas em U faz o professor Tim elogiar em um nível sobre-humano. Nem ao menos cessam os primeiros elogios e ele já elogia o colega do lado por ouvir e sorrir com o elogio que fora proferido ao outro, e ninguém nunca parou para pensar que o professor Tim é apenas um egocêntrico exibido.
Porém, quis o destino que tenha sido justamente o aluno Adriano, numa aula em que as mesas estavam organizadas em forma de U, quem sem querer encontrou um furo no sistema de elogios mela-cueca do professor Tim. Já era final de semestre e o clima era mais de confraternização do que de estudos. Adriano fazia uma observação na qual comparava Levinas com Jesus Cristo, quando seu celular tocou e ele pediu licença para atender a ligação no corredor. Acontece que, por alguma emergência, o aluno Adriano teve que ir embora e então não voltou mais para a aula. Quando, lá pelas tantas, o professor percebeu que o aluno não tinha voltado para a sala de aula e que ele saiu sem ser elogiado, Tim saiu pelos corredores catando o aluno fujão. Pensou que o aluno tinha ido ao banheiro e então foi até lá, ficando parado e durinho na frente da porta, com um elogio esperto na ponta da língua. Mas Adriano tinha pegado outro caminho e já se dirigia para fora da universidade. Ao se abrir a porta do banheiro, saiu de lá um desconhecido, que o professor Tim elogiou por puxar a descarga e lavar as mãos depois da mijada. Depois o professor saiu correndo feito um retardado mental pelos corredores da PUC gritando o nome do aluno. Correu até a entrada do campus e viu, no outro lado da Avenida Ipiranga, o aluno esperando o ônibus na fila do T1. Tim atravessou a avenida correndo, mas, quando chegou no outro lado, o seu aluno estava subindo no T1 lotado. Sem exitar, chamou um táxi e, mesmo sem enfiar as duas pernas no carro, apontou para o ônibus e disse:
-- Táxi, siga aquela alteridade!
Nem andaram duas quadras e as pessoas do T1 viram que estavam sendo seguidas por um táxi com um cara gordo gritando elogios pela janela. O motorista executou uma sequência de manobras para confirmar a suspeita e teve certeza de que estava sendo seguido por um lunático. Tim mandou o taxista emparelhar com o ônibus e chamou o aluno Adriano pela janela. Um elogio entre dois carros em movimento não era pedir muito, pensava o professor. Adriano escutou seu nome sendo chamado e espiou pela janela, mas o que ele enxergava pela janela e em pânico, com os veículos em movimento, era apenas um maluco pendurado na janela de um táxi e com a língua balançando para fora da boca.
O ônibus parou na parada do Moinhos Shopping e uma turma de jovens, incluindo o aluno Adriano, desceu. O táxi do professor Tim parou logo em seguida e o professor desceu e seguiu o grupo em direção à entrada do shopping. O professor tinha a aparência de um vilão de novela em seus momentos finais: a pele do rosto gordo reluzia, um lado da gola da camisa estava para cima e outro para baixo e os cabelos despenteados tinha as pontas empapadas de suor. Mas sua expressão assustadora mudou completamente quando ele se deu conta do que estava acontecendo naquele local. Era um rolezinho no shopping. Mais de cem jovens que tinham saído da favela acabavam de entrar no local dançando e cantando suas músicas. Os olhos do professor Tim brilhavam. O tempo congelou. Era muita alteridade para um lugar só. Agora o professor Tim deslizava suavemente pelos corredores do shopping, ao ritmo das batidas do funk que tocava, valsando no céu dos elogios, elogiando todos, mesmo aqueles que não estavam lá pelo rolezinho. Distraiu-se com o mar de alteridade em sua frente e esqueceu-se do aluno Adriano. Nada mais tinha importância. Era só elogiar, elogiar, elogiar e elogiar. Era como um sonho. Um elogio àqueles jovens que saíram da favela para chocar o status quo com sua alteridade, à suas músicas e suas danças, ao evento em si, aos seguranças que não batiam em ninguém, à organização do shopping, à decoração de Natal que ainda não tinha sido retirada, aos vendedores, aos clientes, aos faxineiros, ao céu estrelado. Cada estrela era um elogio. Um elogio ao Outro, ao ano que começava, aos clientes espalhando sujeiras pelo chão, às luzinhas vermelhas, brilhando e brilhando, ao funk que tocava, aos disparos de bala de borrachas ao fundo, à maratona que nosso professor Tim corria pelo shopping, que aquele dia foi para ele a maravilhosa cidade da alteridade infinita, com ruas, becos, escadarias e rolezinhos.
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