quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

Quem não caga é coxinha

O que começou apenas como um evento fake organizado pelo Facebook acabou se tornando a maior manifestação política da história recente de Porto Alegre. A descrição do evento, feita sabe-se lá por quem e com qual intenção, era a seguinte: "Em assembléia realizada no último domingo, que contava com mais de 500 pessoas, o Bloco de Lutas decidiu fazer um grande ato reafirmando sua luta por um transporte 100% público, pelo passe livre, nenhum aumento de passagem e contra a Copa da Fifa. Então o bloco convida  a todxs a se concentrarem em frente a prefeitura, fortalecendo o movimento e CAGANDO ATÉ A VITÓRIA. Convocamos todxs xs estudantes e trabalhadorxs para se somar em luta. SE A PASSAGEM AUMENTAR, PORTO ALEGRE VAI CAGAR. NÃO TEM HISTÓRIA, É CAGAÇO ATÉ A VITÓRIA". O que era evidentemente uma piada acabou ganhando força e chegou a ter quase 15 mil pessoas com participação confirmada. O próprio Bloco, após anos de luta e organizadores do protesto, acabaram simpatizando com a ideia de um protesto diferente, que poderia chamar a atenção dos políticos corruptos e assumiram o Cagaço Porto Alegre. 

A ideia até que era muito boa: ela seguia o cânone do famoso "panelaço" que ficou famoso recentemente na Argentina, só que além do barulho, o Cagaço também visava chamar a atenção pelo fedor dos peidos gasosos e das bostas dos manifestantes. Cerca de 10 mil pessoas se reuniram no dia do evento na praça central de Porto Alegre e marcharam com convicção e gritando palavras de ordem rumo à prefeitura. Chegando até o local, a turma de cagões entrou em formação: mais de mil canhões de cocôs humanos foram armados. Cada um virou-se de costas, arriou as calças e começou a cagar. 

A polícia não sabia o que fazer porque não fazia ideia do que estava acontecendo; repórteres chegaram ao local em meio ao mau-cheiro e ao mar de bosta que virou a frente da prefeitura. Um cornetaço de peido sincronizado, que nunca antes havia sido ouvido na história desse país, tomava conta das ruas de Porto Alegre. Faixas diziam coisas do tipo: O gigante acordou com diarreia, Não vai ter Copa, vai ter bosta. E num megafone alguém repetia sem parar: Quem não caga é coxinha,quem não caga é coxinha, quem não caga é coxinha, quem não caga... 

"Enquanto não for transporte 100% público, a gente vai continuar cagando" -- disse o representante do movimento para um repórter. Mas logo chegou a notícia de que o batalhão de choque da Polícia Militar havia sido mobilizado. Os policiais, nos arredores, já estavam revistando a mochila de quem ainda estava chegando e prendiam em flagrante quem estivesse portando ovo cozido ou feijão. "Vamos é fechar o cu desses vagabundos na porrada mesmo" -- um policial acabou gritando sem perceber que estava sendo filmado. 

Logo já estava instaurado o caos. Das quase 10 mil pessoas presentes na manifestação, um pequeno grupo começou a juntar a bosta já cagada no chão e arremessá-la nas janelas da prefeitura. "É bom destacarmos que é apenas um pequeno grupo de baderneiros que está arremessando as bostas, pois o manifestante de verdade está apenas cagando" -- Dizia um repórter ao vivo para o jornal da noite -- "Repito, a maioria das pessoas é pacífica e está fazendo um protesto apenas cagando e sem vandalismo". "Essas pessoas que depois de cagar jogam as bostas na prefeitura e nos policiais de forma alguma representam o nosso movimento" -- defendia-se o líder do Bloco. Um jovem, estudante de Ciências Sociais da UFRGS, se sobressaiu em meio à multidão, causando alvoroço, devido ao fedor e a quantidade absurda de bosta que cagava em razão de todos os almoços feitos no RU e da quantidade de livros Karl Marx já lidos, e acabou sendo preso pela PM. Um policial, já sem saber o que fazia, pensou ter ouvido um peido e acabou disparando um tiro de bala de borracha em uma repórter. Diante do despreparo e da truculência da Polícia Militar, os manifestante começaram a revoltar-se ainda mais e em pouco tempo já tinha gente cagado por todos os lados. Muitos acabaram se juntando a manifestação depois que ela foi vista na TV e, dessa forma, lá tinha gente cagando contra a corrução, gente cagando contra a presidenta, gente cagando pela volta da ditadura, gente cagando contra o Sarney e gente cagando contra a Copa do Mundo. 

O Cagaço Porto Alegre acabou quando a polícia resolveu contra-atacar na mesma moeda e atirou diversas bombas de gás lacrimogêneo nos manifestantes, que se dispersaram quando já passava da meia-noite. Alguns baderneiros permaneceram ainda cagados correndo pelas ruas, mas a polícia conseguiu prendê-los com facilidade, pois quase todos paravam para fotografar com o celular a bosta que cagaram para postar nas redes sociais. De qualquer forma, foram mais de cinco horas de cagaço coletivo em Porto Alegre e isso assustou até os mais poderosos políticos. O prefeito, temendo um novo Cagaço, criou um projeto para desmantelar o cartel de empresas de ônibus na cidade e, duas semanas depois, Porto Alegre era a primeira capital do país com transporte 100% gratuito. Um projeto para trocar todos os ônibus em movimento na cidade por ônibus movidos a energia elétrica, que não emitem gases poluentes, está em discussão, com grandes chances de aprovação. E tudo começou por que o povo resolveu sair de casa e ir para as ruas cagar. 

E você, o que está fazendo para mudar o cenário político do seu país? 

Eu to cagando. 

terça-feira, 21 de janeiro de 2014

Táxi, siga aquela alteridade!

Por mais qualificado que seja o corpo docente de um PPG e por mais que seu corpo discente seja formado por estudantes capazes de escrever teses mais longas e chatas que o jejum de títulos do Grêmio, analíticos capazes de analisar analiticamente até o cu mistico de primeiro Wittgenstein, fenomenólogos capazes de escrever frases incompreensíveis até para David Lynch, hegelianos capazes de defender, acusar, julgar e condenar o parágrafo XII de um texto sobre o parágrafo XIV da Fenomenologia do Espírito e argumentadores capazes de argumentar e refutar os próprios argumentos enquanto argumentam, tudo isso não significa nada se entre eles não houver o professor paga-pau que não perde uma chance de elogiar seus alunos, seja depois de uma observação em aula, seja por que o cara soube combinar perfeitamente a meia branca esportiva com o tênis e a calça. 

É claro que estamos falando aqui de nosso filósofo preferido em todo o mundo: o professor Tim. O professor Tim só tem duas certezas nessa sua vida mocoronga: a ética é a filosofia primeira e a melhor forma de organizar as mesas na sala de aula é colocá-las formando um U no centro da sala. As mesas em U, como todos deveriam saber, é a bosta em matéria de mesas e só pode combinar com uma aula de bosta. As mesas em U numa sala de aula é uma ideia tão tosca que logo que alguém começa a organizar a sala de aula, as mesas já vão olhando para as cadeiras e perguntando: "vem cá, não querem vocês, só hoje, serem as mesas e a gente fica de cadeira?". Podem apostar que se um dia as mesas fizerem uma greve, o fim das mesas em U estaria no topo da lista de exigências. Conhecida entre garções e donos de bar como o lixo das mesas, a organização das mesas em U é a principal causa de depressão entre mesas. Elas ficam tão tristes que sempre que alguma bebida alcoólica é tombada em cima delas, se apressam em sugar todo o líquido para esquecerem logo que estão organizadas de uma forma tão ridícula. Não é a toa que a organização em U das mesas é a que mais se parece com um cocô e que os alunos que chegam atrasados para aula do professor Tim, para evitar correr uma São Silvestre só para achar um lugar para sentar, resolvem dar meia volta e ir embora logo que entram na sala. Eu só consigo pensar em duas circunstâncias em que a organização das mesas em U numa sala de aula estaria justificada: 1- se os alunos começassem a brincar de telefone sem fio no meio da aula e 2- se uma organização de mesas em C fosse feita logo ao lado, deixando bem visível no meio da sala de aula a imponente sílaba CU. 

No entanto, não é em todos os aspectos que a organização das mesas em U é horrível, pois ela é muito útil para a atividade preferida do professor Tim: o elogio rasgado, a pagação de pau sem limites. E isso se dá porque o professor Tim não se contenta em apenas elogiar, ele quer olhar para o rosto do aluno elogiado, tipo aquele namorado que curte gozar olhando nos olhos da namorada. Tim gosta de fazer valer o seu momento de elogio e quer também que todos vejam como ele é legal e humildão. 

E era justamente esse aspecto da personalidade do professor Tim que Adriano tanto apreciava, o que o fazia, inclusive, simpatizar com a organização das mesas em U. Desde o momento em que Adriano entrou numa sala de aula e assistiu uma aula dada pelo professor Tim, sua vida nunca mais foi a mesma. No momento em que seu comentário acaba de sair de seus lábios, ele já escuta de volta algum elogio cara de pau do professor. Antes suas opiniões eram comuns, banais e sem importância, mas na aula do Tim, tudo o que ele falava se tornava um acontecimento. Tim elogia mesmo, desde as palavrar utilizadas para formar o raciocínio até a suposta escolha na tradução de um termo em alemão que ninguém sabia de onde saiu. O problema é que Tim é viciado em elogio. Assim que faz o primeiro, não consegue mais parar de elogiar e sente uma necessidade incontrolável de elogiar todo mundo.  No primeiro elogio da aula são só risos e alegrias, mas já no quinto ou sexto os alunos novatos começam a se perguntar se não há nada de errado com o simpático profe e nem sequer esboçam mais um risinho. Pensam que é problema com bebida e que o professor Tim está passando por uma desintoxicação e, como fumantes que se viciam em chiclete depois de lagar o cigarro, o seu professor está substituindo o vício em álcool pelo vício em elogio: "Essa tua questão toca no nervo do problema, só você para pensar nisso, Moisés", "Gustavo, mais uma vez você nos brinda com uma observação única sobre a desconstrução no direito", "Felipe, você tem malhado? Tá com os ombros largos". E nem adianta tentar fugir depois do comentário ou da pergunta, pois não importa o que aconteça, o professor Tim vai até o inferno, se for preciso, para elogiar seu aluno. Para onde quer que o aluno participativo se dirija depois da aula, cedo ou tarde, lá estará o professor Tim para elogiar sua colocação deveras pertinente e única. Se, saindo da sua aula, o professor Tim avistar em alguma sala de aula algum professor ou algum aluno falando, ele, transbordando simpatia e com um sorrisão em sua cara gorda, interrompe a tal aula para elogiar o que está sendo dito, o que todos reagem conforme manda a etiqueta. 

Para esses elogios intermináveis, a organização das mesas em U é o terreno perfeito para o professor Tim, o Carro-Velho da PUC, o nosso Rei do Elogio. E isso porque assim ele pode aproveitar totalmente o clima de euforia ébria de um momento de elogio. Seu maior sonho é começar a elogiar o primeiro aluno sentado no U e terminar no último, elogiando cada um pela sua alteridade, como se fosse um recordista tentando entrar para o Livro dos Recordes. Mas uma coisa nós temos que admitir: o professor Tim tem mesmo sua platéia na palma de sua mão. No final da aula, todos saem eletrizados por uma energia que não se encontra nas demais aulas de filosofia, pois só espíritos livres e superiores, que realmente se preocupam com a alteridade, podem criar esse cenário -- ou, talvez, essa figura seja apenas um louco de hospício. O fato é que a organização das mesas em U faz o professor Tim elogiar em um nível sobre-humano. Nem ao menos cessam os primeiros elogios e ele já elogia o colega do lado por ouvir e sorrir com o elogio que fora proferido ao outro, e ninguém nunca parou para pensar que o professor Tim é apenas um egocêntrico exibido. 

Porém, quis o destino que tenha sido justamente o aluno Adriano, numa aula em que as mesas estavam organizadas em forma de U, quem sem querer encontrou um furo no sistema de elogios mela-cueca do professor Tim. Já era final de semestre e o clima era mais de confraternização do que de estudos. Adriano fazia uma observação na qual comparava Levinas com Jesus Cristo, quando seu celular tocou e ele pediu licença para atender a ligação no corredor. Acontece que, por alguma emergência, o aluno Adriano teve que ir embora e então não voltou mais para a aula. Quando, lá pelas tantas, o professor percebeu que o aluno não tinha voltado para a sala de aula e que ele saiu sem ser elogiado, Tim saiu pelos corredores catando o aluno fujão. Pensou que o aluno tinha ido ao banheiro e então foi até lá, ficando parado e durinho na frente da porta, com um elogio esperto na ponta da língua. Mas Adriano tinha pegado outro caminho e já se dirigia para fora da universidade. Ao se abrir a porta do banheiro, saiu de lá um desconhecido, que o professor Tim elogiou por puxar a descarga e lavar as mãos depois da mijada. Depois o professor saiu correndo feito um retardado mental pelos corredores da PUC gritando o nome do aluno. Correu até a entrada do campus e viu, no outro lado da Avenida Ipiranga, o aluno esperando o ônibus na fila do T1. Tim atravessou a avenida correndo, mas, quando chegou no outro lado, o seu aluno estava subindo no T1 lotado. Sem exitar, chamou um táxi e, mesmo sem enfiar as duas pernas no carro, apontou para o ônibus e disse: 

-- Táxi, siga aquela alteridade! 

Nem andaram duas quadras e as pessoas do T1 viram que estavam sendo seguidas por um táxi com um cara gordo gritando elogios pela janela. O motorista executou uma sequência de manobras para confirmar a suspeita e teve certeza de que estava sendo seguido por um lunático. Tim mandou o taxista emparelhar com o ônibus e chamou o aluno Adriano pela janela. Um elogio entre dois carros em movimento não era pedir muito, pensava o professor. Adriano escutou seu nome sendo chamado e espiou pela janela, mas o que ele enxergava pela janela e em pânico, com os veículos em movimento, era apenas um maluco pendurado na janela de um táxi e com a língua balançando para fora da boca. 

O ônibus parou na parada do Moinhos Shopping e uma turma de jovens, incluindo o aluno Adriano, desceu. O táxi do professor Tim parou logo em seguida e o professor desceu e seguiu o grupo em direção à entrada do shopping. O professor tinha a aparência de um vilão de novela em seus momentos finais: a pele do rosto gordo reluzia, um lado da gola da camisa estava para cima e outro para baixo e os cabelos despenteados tinha as pontas empapadas de suor. Mas sua expressão assustadora mudou completamente quando ele se deu conta do que estava acontecendo naquele local. Era um rolezinho no shopping. Mais de cem jovens que tinham saído da favela acabavam de entrar no local dançando e cantando suas músicas. Os olhos do professor Tim brilhavam. O tempo congelou. Era muita alteridade para um lugar só. Agora o professor Tim deslizava suavemente pelos corredores do shopping, ao ritmo das batidas do funk que tocava, valsando no céu dos elogios, elogiando todos, mesmo aqueles que não estavam lá pelo rolezinho. Distraiu-se com o mar de alteridade em sua frente e esqueceu-se do aluno Adriano. Nada mais tinha importância. Era só elogiar, elogiar, elogiar e elogiar. Era como um sonho. Um elogio àqueles jovens que saíram da favela para chocar o status quo com sua alteridade, à suas músicas e suas danças, ao evento em si, aos seguranças que não batiam em ninguém, à organização do shopping, à decoração de Natal que ainda não tinha sido retirada, aos vendedores, aos clientes, aos faxineiros, ao céu estrelado. Cada estrela era um elogio. Um elogio ao Outro, ao ano que começava, aos clientes espalhando sujeiras pelo chão, às luzinhas vermelhas, brilhando e brilhando, ao funk que tocava, aos disparos de bala de borrachas ao fundo, à maratona que nosso professor Tim corria pelo shopping, que aquele dia foi para ele a maravilhosa cidade da alteridade infinita, com ruas, becos, escadarias e rolezinhos. 

segunda-feira, 13 de janeiro de 2014

Ser que pode ser compreendido é linguagem

Escrito com sombra e luz e
foto
grafia, o mundo 
escreve-se com a
luz que é 
e você ainda pensa que 
não lê. 

Traduzir o mundo,
traduzir os mundos
a partir de 
seus rastros 
ausências e 
silêncios. 

Ler, 
mesmo quando não há
letras;

ler,
mesmo quando não temos 
lentes.

Ler 
o que nunca foi 
escrito 
mesmo que seus olhos
lentos 
sejam suas únicas 
lentes.

Ler 
o sentido 
diverso
imerso
nas cores do mundo. 

-- Die Aufgabe des Übersetzers:
traduzir 
o mundo 
as cidades e
os sentidos -- 

mundo-texto
mundo-luz
mundo-ser
mundo-cor
mundo-cidade
baixa
e seus olhos cheios de
cimento
e seus cimentos cheios de 
sentido.

domingo, 12 de janeiro de 2014

A contradição da linguagem - parte II

"Filho de uma cadela", gritou Ramiro cuspindo ao ver que o cliente da mesa nove havia saído da cantina sem pagar pela coxinha de frango que havia consumido. O grito pode ter sido um pouco exagerado, mas o sentimento era merecido, afinal Ramiro dedicava toda a sua atenção e fazia de tudo para que a Cantina Dois fosse a mais acolhedora de todo o campus. Ramiro também mimava tanto os clientes que só faltava se despedir deles com um abraço depois que as contas eram pagas. Era assim que Ramiro era: um boa praça, um sujeito legal. Um tipo que se vê cada vez menos hoje em dia e que chegará um tempo em que não veremos mais, dada a a situação cada vez mais dominante hoje que faz o jovem incapaz de expressar simpatia, de dar calorosos e verdadeiros abraços, de olhar com ternura nos olhos e de sorrir aberto e sem receios, seja esse jovem comunista engajado, direitista reacionário, hippie bissexual pós-estruturalista ou analítico de shopping. 

Já Ramiro, o bom sujeito, fazia questão de sempre ser certinho. Terminava a missa de domingo e ele, ao estilo de um vereador em passeata, saia saudando todo mundo, até as imagens santas, sem nunca perder o sorriso do rosto, sua marca registrada. "Tudo joia?" "E a família como vai?" "A vó tá bem?". Ramiro era um cara tão gente boa, mas tão gente boa, que uma vez foi convidado para comer uma pizza na casa de um amigo, e, na pressa ao morder a pizza, acabou comendo um pedaço do guardanapo, o que todos viram. Ramiro passou o resto da noite elogiando e dizendo que aquele tinha sido o melhor guardanapo que ele já comera. Ramiro era tão gente boa que sempre que podia contribuía com a sua simpatia e seu sorriso no rosto em qualquer recepção. O cara era tão gente boa que atendia bem os clientes até quando eram clientes de outro estabelecimento e não de sua cantina universitária, como da vez que, na praça de alimentação do shopping, passou de mesa em mesa cumprimentando os cliente e perguntando se eles estavam bem servidos ou se desejavam algo mais; "Qualquer coisa que não esteja do seu agrado, pode falar diretamente comigo, tá bom? E a vó melhorou?". 

Por tudo isso havia como que um contrato social vigente em Ijuí e que definia que ninguém nunca deveria tentar prejudicar a Cantina Dois do boa-praça Ramiro. Talvez o universitário caloteiro da coxinha de frango não conhecesse o homem e sua fama e, por isso, cometeu o erro que muitos acabam cometendo: o de julgar pela aparência. De fato, a aparência de Ramiro não combinava com sua personalidade. Ele era gordinho, de pele clara e reluzente, sobrancelhas grandes e destacadas, bigode fino e um pouco de cavanhaque embaixo do queixo. Em suma, parecia o próprio diabo - só que loiro, bem loiro. Mas essa possibilidade só irritou Ramiro ainda mais. Primeiro porque ele sempre fez questão de, apesar de sua aparência, ser durante toda a sua vida um homem fino e delicado, quase uma menina. E, segundo, mesmo não sabendo quem era o cliente da coxinha de frango (são tantos estudantes indo e vindo numa noite de aula no campus), tinha certeza que havia tratado esse universitário feito uma princesa.  Tinha até perguntado, já que o universitário estava lendo, se ele não queria que o volume da televisão fosse diminuído, aumentando assim o aconchego de sua leitura. Depois de ir, sem sucesso, até a saída da cantina atrás do estudante, Ramiro estava agora no caixa, puto da vida, vermelho de indignação (o que se destacava muito em seu rosto tão branco) e tentava obter da garçonete Rúbia pistas do paradeiro do pilantra. 

- Seu Ramiro, limpa o cavanhaque, tá com babinha. 

- O pano, por favor, Rúbia, 

- Toma aqui. O pessoal da mesa oito disse que ele estava lendo um livro grande, grosso e que parecia estar em alemão. Cante, Canti, Conte, algo assim era o autor. Deve ser coisa das ciências humanas, aquela turma de maconheiros. 

- Tinha que ser alemão! Tudo de ruim que acontece no mundo, se a gente for ver, tem alemão metido. Tudo! 

- Mas ninguém sabe o nome dele, não, seu Ramiro. 

Uma rápida pesquisa na internet fez Ramiro descobrir que o ladão de coxinhas de frango estava lendo a  versão original em alemão da Crítica da Razão Pura de Immanuel Kant. Já era um começo e o dono Cantina Dois da Unijuí não iria descansar até colocar as mãos no vagabundo. 

- Então, Rúbia, tudo que a gente tem é o nome de um livro: Crítica da Razão Pura. 

- Ai que bom, seu Ramiro! Então a gente pode, ao invés de fazer um retrato falado e colar nos postes, sair pelo campus perguntando quem já leu a Crítica da Razão Pira. Facilita

- Pura! Crítica da Razão Pura! 

- Aie, tá bom. 

- Querida, vá até a biblioteca central e veja quantos exemplares desse livros temos disponível aqui pelo campus. E depois espalhe pelo campus que eu darei mil reais de recompensa para quem me der pistas do dono do livro. 

- Mas, seu Ramiro, e se for um livro famoso e tiver muitos exemplares pelo campus? 

- Te vira, porra! 

Irritado, como nuca havia ficado, Ramiro tirou um lenço de papel do bolso e secou o suor que escorria pela sua testa, mas estava com tanta raiva que amaçou o lenço numa bolinha e jogou no chão. Lastimava que houvesse no mundo um ser humano capaz de enganá-lo, ele que era tão bom e puro feito uma criança. Depois do final da noite de trabalho e enquanto jantavam na cantina vazia, Ramiro e a garçonete Rúbia já haviam feito todas as conexões que eram capazes de fazer e não pareciam sair do lugar. Ele, enquanto comia sua sobremesa, só pensava em dar seguimento ao seu elaborado plano de vingança. Logo concluíram que o caso era complicado e necessitava de trabalho profissional. Foi então que Rúbia lembrou que no mural do Prédio F havia colado um folder com o telefone de um detetive particular; "Detetive Paulo Rudi, se não me engano". 

A garçonete correu e logo voltou com o número do telefone do tal de detetive. Com o número em mãos, Ramiro fez a ligação que mudaria para sempre a história do curso de graduação em filosofia da pequena Unijuí: 

- Alô. Detetive Paulo Rudi? Ramiro, da Cantina Dois da Unijuí. Tudo bem? Que bom. A família como tá? Maravilha. É o seguinte, meu amigo: um estudantezinho aqui da universidade saiu sem pagar a coxinha de frango e eu quero contratar os seus serviços, pode ser? Era homem. Endereço dele? Não temos. Na verdade só temos o nome de um livro: Crítica da Razão Pura. O senhor vai ter que começar por aí. Não, não faço ideia do paradeiro dele. O senhor consegue encontrá-lo? Hã? Contradição do que? Contradição da linguagem? A contradição da linguagem vai levar até o bandido? Se o senhor tá falando, né... Mas assim, detetive Rudi, eu não quero que o canalha seja preso. Veja bem, cadeia é pouco para quem usufrui de nossa hospitalidade e sai sem pagar. Meu plano é o seguinte, caro detetive Rudi: eu tenho um sobrinho meio mala, terceiro semestre de sociologia, e meu plano é descobrir quem é o caloteiro para mandar esse meu sobrinho, de mala e cuia, jantar uma noite na casa dele, que é pra ele sentir na própria pele a humilhação que eu tô sentindo, sabe? Você sabe como chegar no campus? Hum, terá que vir disfarçado? O senhor é bom mesmo, detetive Paulo Rudi. Mas vem cá, essa tal contradição da linguagem funciona mesmo? Ela vai explicar o meu caso da coxinha de frango? 

Do outro lado da linha, vinha a voz fria e confiante do detetive Paulo Rudi:

- Meu amigo, a contradição da linguagem explica tudo. TU-DO. 

CONTINUA...

sexta-feira, 3 de janeiro de 2014

Loide O Arrombador ou sobre a arte de xingar no interior

Se eu fizesse uma lista das coisas que mais amo e que mais sinto falta do interior, certamente que ocuparia o topo desta lista os xingamentos. Ninguém xinga com tanto estilo quanto um jovem adulto do interior. Em Porto Alegre os xingamentos são sempre politizados, são sempre para mostrar que você é mais culto e sábio (e mongo) que seu adversário. São xingamentos do tipo: reaça, esquerdopata, feminazi, coxinha. Sem graça. Falta a manha, falta ousadia e a malandragem do xingamento do interior. Permitam-me dar um exemplo. Tinha acabado de chegar de viagem, quando um amigo veio me visitar e disse bem empolgado: foi pra capital e esqueceu dos amigos, seu arrombado. ARROMBADO. De todas as palavras possíveis para me chamar, ele utilizou essa: arrombado. Não se escuta um xingamento tão bonito como esse pelas ruas de Porto Alegre. Claro que aquilo foi o jeito do meu amigo dizer que estava com saudades de mim (a amizade masculina é realmente tocante). O cenário muda completamente quando a ofensa é dita a um estranho. 

Em toda a nossa gramática, nós podemos encontrar pouquíssimos xingamentos tão ofensivos quanto "arrombado". Ele está quase no final da escalada do pico da pior ofensa. Quando proferido a sério, desfaz qualquer sinal de sorriso e transforma qualquer estranhamento naquele clima quente pré-briga. Aqui no interior, o "arrombado" funciona como um pré-soco na cara e substitui aquilo que vocês aí da capital utilizam com frequência: o empurrão que antecede a porradaria. Aqui a palavra tem uma função quase interjectiva. Assim como "pare" faz alguém interromper sua ação e "pega" faz com que o cão inicie a perseguição, o "arrombado" funciona como um estimulo elétrico aplicado direto nos nervos dos braços e das pernas, fazendo-as se mover rapidamente, em forma de socos e pontapés, em direção ao corpo do ofensor. Trata-se de uma daquelas ofensas sem volta que podemos encontrar na língua portuguesa. Ninguém pode ponderar depois de ser chamado de arrombado. Você não pode parar e pensar "hum, talvez ele não quis dizer isso que disse". Assim como você não pode se desculpar depois de chamar alguém de arrombado ("desculpa, cara, eu não quis dizer que sua mãe é arrombada"). Depois que o "arrombado" é proferido, estamos diante de uma daquelas situações kafkianas que não permitem volta. O arrombado só deixa uma alternativa ao ofensor e ao ofendido: a briga, que só terminará quando uma das partes envolvidas estiver inconsciente.

É por isso que, aqui no interior, não existe prova maior de amizade do que chamar o amigo de arrombado, sabendo que tudo vai ficar bem porque os dois são amigos e nunca um atacaria o outro. E é por isso também que chamar um desconhecido de arrombado e escapar das consequências é realizar uma façanha tão incrível quanto botar a cabeça dentro da boca de um leão ou saltar com uma moto por dentro de um círculo de fogo. E isso me faz lembrar do antigo mecânico que trabalhava para o meu pai na sua loja de peças agrícolas. Seu nome era Loide.  

O fato é que o mecânico Loide, no auge da genialidade de quem passou a vida todo no interior, inventou um método que permitiu que ele fosse capaz de xingar seus chefes (no caso, meu pai e seu sócio) de arrombados sem sofrer qualquer retaliação. Eu nunca entendi porque o mecânico Loide fazia tal coisa. Talvez ele quisesse se vingar secretamente de imposições e menosprezos que sofria sistematicamente no trabalho. Ou talvez fosse apenas pelo lindo vandalismo puro. De qualquer forma, Loide tinha um engenhoso esquema. Vou explicar. 

Durante uma época, a simpática loja do meu pai estava sofrendo uma série de arrombamentos, em que se concluiu que o ladrão agia ou por loucura ou por esporte, já que nenhuma das vezes roubou alguma coisa. Ele só violava fechaduras, trincos, travas e fechos. O guardinha da rua que se chamava Diógenes, um sujeito que vivia bêbado e que me ensinou, quando eu era criança, a atirar (sério), criou para o ladrão a identidade secreta de O Arrombador. 

Com o tempo, todos os prejudicados pelas ações do bandido concordaram em chamá-lo de O Arrombador. O mecânico Loide era sempre o primeiro a se oferecer a ajudar a investigar, responder perguntas e a encontrar o responsável. Foi observando seu comportamento numa dessas ocasiões que eu descobri que ele na verdade estava por de trás do Arrombador e me dei conta de seu genial método para chamar seus chefes de arrombados. Um desses diálogos aconteceu quando eu e meu pai entramos na loja logo depois de um dos arrombamentos. Meu pai estava desesperado pensando que algo de valor tinha sido roubado:

- Meu Deus do céu Loide, espero que nada tenha sido danificado. 

Eis a resposta do mecânico:

- O cofre foi, arrombado. 

Meu pai ficava sem entender:

-Oi?

E o mecânico completava magistralmente: 

- O cofre foi arrombado, chefe. 

Meu pai corria logo para o cofre para conferir e encontrava o cofre arrombado, mas nada de dentro dele havia sumido. É dessa forma que o mecânico Loide, o maior gênio do mal que eu já tive a honra de conhecer nessa minha vidinha, utilizava a sutil diferença provocada pela pausa de vocativo para impor ao seus chefes essas pequenas humilhações secretas. O plano não seria tão fácil de ser realizado se Loide não trabalhasse no local, tendo, dessa forma, acesso fácil a todas as chaves, lugares e senhas. Nunca nada de valor era roubado e ninguém sofria consequência material alguma, além do medo de todos os empregados que pensavam que estavam lidando com alguma força superior, algum tipo de punição divina ou como se o próprio diabo habitasse aquela pequena loja de peças agrícolas. 

Um dia uma janela que sempre era trancada no final do expediente de trabalho amanheceu estranhamente aberta. O guarda Diógenes bateu na porta da minha casa, que era ao lado da lojinha, para avisar do ocorrido. Como meu pai estava viajando, minha mãe foi ver se tudo estava bem na loja que garantia o pão em nossa mesa. E eu fui junto porque não podia perder essa oportunidade de ver a genialidade do mecânico Loide em ação. 

Dito e feito. Loide já estava por lá. Minha mãe já foi logo perguntando:

- Graças a Deus, parece que nada foi roubado ou quebrado de novo.

- Só a janela, arrombada. 

- Como?

- Só a janela foi arrombada, senhora. 

- Ah, sim, ainda bem que foi só a janela mesmo. 

Por alguma razão, esses xingamentos subliminares parece que se alojaram de alguma forma na alma dos meus pais, que passaram a cada vez mais tratar o mecânico Loide com mais respeito e afeto. Chegaram até a convidá-lo a passar uma ceia de Natal conosco. Loide apareceu completamente bêbado e com uma puta gorda que fedia muito, mas essa já é outra história. Durante esse tempo, era sempre assim que se começa um dia de trabalho normal na antiga lojinha do meu pai:

- Arrombado! 

- Como é que é? 

- Cofre arrombado de novo, chefe.

- Merda! 

Essa é a história do mecânico Loide, o arrombador de loja que ao invés de roubar valores materiais, roubava, sem ser percebido, a dignidade de seus superiores. Meu pai sempre ficava ali parado, sem reação, sem nada entender, perplexo na sua lojinha arrombada e iluminada pela primeira luz da manhã. E é por tudo isso que para todo o sempre o mecânico Loide será o meu gênio maligno, o meu supervilão, preferido.