sexta-feira, 26 de setembro de 2014

Vote consciente

A eleição, essa grande festa da democracia, para mim é como qualquer outra festa: eu vou e não pego ninguém. Só que até aí tudo bem, nem ligo mesmo. O que me desgraça da cabeça é essa galera pedindo "voto consciente". Um exército de rapazes leitores de Foucault e que usam sandália de couro e bermuda da Adidas pede, com a voz tranquila que é característica da cara de pau, que a gente vote consciente. Só que se você deixar a conversa se alongar por mais de dois minutos perceberá que o votar com consciência nada mais é do que votar no candidato dele. De todos os vermes parasitas, o que mais me irrita é esse que vive para pedir o voto consciente dos outros. 

Não me levem a mal, o meu voto é totalmente consciente. Tenho total consciência de que a merda é inevitável e de que estou votando em qualquer porcaria. Meu critério para esse voto consciente é apenas um: tento imaginar o candidato bebendo comigo. Não pode ser churrasco depois do futebol (os piores candidatos são aqueles que vão para o churrasco depois do futebol). Tem que ser em algum bar da minha escolha, em algum boteco bagaceira da CB. Que seja o Speed. Se não consigo imaginar o candidato lá bebendo e rindo comigo, escutando sobre os livros que li e os filmes que curto e xingando a galera idiota que tá no Pinguim, ele não tem o meu voto de jeito nenhum. Nenhum candidato a deputado ou a governador que não tenha morrido de rir com o Morto muito louco ou que não ache o Zidane o jogador mais foda que já existiu  no planeta merece me representar. Isso, galera, é votar com consciência. 

terça-feira, 16 de setembro de 2014

sexta-feira, 12 de setembro de 2014

A menina que não tinha rosto

Todas as pessoas que nasciam naquela pequena aldeia tinham uma peculiaridade: elas nasciam sem rosto. Lá se aprendia logo que desde os primeiros momentos de vida cada ato e pensamento da criança seriam um influenciador direto de todo traço e detalhe que surgiria em sua face, a princípio inexpressiva. O susto do nascimento já poderia dar para cada um os rasgos entre as sobrancelhas. A falta de ar durante uma noite de asma poderia dar uma arrebitadinha no nariz. As canções de ninar da mamãe, que enchem a casa de amor, poderiam dar a alguém a concavidade dos lábios, para desde sempre ensaiar longos sorrisos, ainda que no começo faltem os dentes. Não se sabia por que, diferentemente de todo mundo na aldeia, Luna -- que era conhecida na escola como "A menina sem rosto" ou apenas "Luna sem rosto" -- não conseguia desenvolver os traços e os desenhos de seu rosto. 

Mãe Canchinha, a velha benzedeira da aldeia e que costumava profetizar alguns acontecimentos enquanto balançava um sino velho com um pêndulo enferrujado, dizia que Luna não tinha um rosto porque não tinha sentimentos. Essa menina não é do céu e nem do inferno, ela dizia e balançava o sino (blem blem). Essa menina não tem um lado, ela é do meio, ela não faz nada, ela não fala nada, ela não sente nada, ela não é nada, ela é o próprio nada (blem blem blem) -- completava. No entanto havia também quem acreditasse que Luna tinha, sim, sentimentos, só que lhe faltava um rosto para poder expressá-los. Na verdade era impossível saber o que tinha faltado primeiro para a menina que não tinha rosto. 

Os pais de Luna fizeram tudo o que podiam. Encheram a menina de mimos e amor, de canetinha de cor e de vestidinhos de flor. Porém nada fazia surgir em Luna seu primeiro sorriso, seu primeiro choro, seu primeiro berro ou sua primeira dor. Nada do que faziam parecia funcionar e ajudar a tirar a menina que não tinha rosto da inércia do não-sentir e do não-ser. 

Assim ela cresceu: não gostava e nem desgostava de seus pais e de seus irmãos, não ouvia música, não costumava ler, não se interessava pelos meninos. anulava seu voto nas eleições da aldeia, usava sempre frases neutras nas mais acaloradas discussões e não entendia como as pessoas podiam se apaixonar. Imune a qualquer prazer ou frustração, uma das únicas opiniões sustentadas por Luna era de que não valia a pena ter uma boca, para dar todas as gargalhadas que alguém poderia dar em uma vida, e nem olhos, para tantas quantas fossem as lágrimas que sempre se intercalam com as alegrias. 

-- Nem tudo está perdido -- dizia Mãe Canchinha -- Luna, a menina sem rosto, ainda pode vir a ser uma grande filósofa analítica. 

Blem blem blem. 


quinta-feira, 11 de setembro de 2014

Alana II

Os dois verbos preferidos de Alana eram amar e ser, mas ela não se dava conta que nunca os utilizava juntos na mesma frase. Com o primeiro ela podia falar de todas aquelas coisas que ela não vivia sem. Amava viagens de trem; amava rock inglês; amava beber vinhos antigos e ficar com a boca roxa; amava viajar; amava conhecer cidades e pessoas novas; amava ser livre para poder amar quem bem entendesse e pelo tempo que pudesse. Com o outro verbo, Alana -- com toda a segurança que ela fingia ter -- era. E ela era muito, era o máximo que podia ser, era de toda coração, era com toda a força do mundo, era tanto que era invejada por tanto ser ou por tanto ser sem ser. Alana ia sendo. Alana ia. 

O verbo ir pode não estar na lista de verbos preferidos de Alana, mas com certeza estava entre os mais conjugados por ela. Alana adorava falar que estava indo e que ia para onde bem entendesse. Alana não ficava, Alana ia. Ela gostava mesmo era de ir. Sempre dizia: me chama que eu vou. E lá ia Alana, às vezes nem precisava chamar, lá vai Alana, já foi Alana, de novo. 

Certo dia Alana se entregou a uma reflexão que teimava aparecer de vez em quando: ela nunca tinha dito em alta e bom som o verbo ser no presente do indicativo seguido pelo amor adjetivado no feminino na mesma frase: sou amada. A controvérsia era que Alana não amava ser e por não amar ser preferia ser o que não era de fato. E por não ser o que era de fato, Alana precisava sempre estar indo. E quem sempre está indo não fica, não para e não volta. E quem não fica, não para e não volta não se deixa amar e não é amado.   

Então decidiu voltar para o antigo endereço, para a casa que ela jurou há tempos não voltar mais. Era o único lugar que ela pensava que poderia ser e amar na mesma frase. Vestiu-se de si, por dentro e por fora, e foi pela última vez. Depois desse dia nunca soube de Alana e não sei sua reinvestida ao passado deu certo. O que sei é que aqui -- onde ela sempre passava quando estava indo a algum lugar, com as pernas firmes de quem sabe que tem que ir e os olhos marejados de quem não sabe para onde tem que ir -- ela não veio mais. 

Gosto de imaginar um final para Alana. Na minha imaginação, ela não esqueceu nunca mais que quem ama sem ser e quem é sem amar está sempre indo, indo para lugar nenhum. E na sua imaginação, o que acontece com Alana?