terça-feira, 29 de julho de 2014

Analítica existencial do Gato Dasein

A julgar pelo seu aspecto, o gato que espia as ruas da CB pela janela do apartamento vive bem. Ninguém sabe bem por quê. É bem provável que o gato apenas gosta de estar vivo. As condições de vida do gato, segundo o seu próprio ponto de vista, são satisfatórias. 

É difícil analisar fenologicamente a paz de espírito de um gato. No entanto, cor que se observa na superfície das coisas vivas pode servir de parâmetro para um começo. 

O gato está cada dia mais amarelo. E ainda que o amarelo na bandeira do Brasil simbolize o ouro e as riquezas materiais, e ainda que o amarelo do gato o faça parecer reluzente e vivo, e ainda que o gato viva no Brasil, o gato não escolheu a cor que tem e, logo, sua tonalidade não significa nada. A cor amarela do gato diz respeito unicamente ao seu estar-jogado-no-mundo: se vive bem, se está feliz, o gato fica mais amarelo. 

O gato na janela cresce em direção às ruas movimentas da CB. Isso significa que ele está cada vez mais inclinado para fora da janela e do apartamento. Isso significa que o gato se importa, ainda que discretamente, com o lado de fora do apartamento. 

Dizer que o gato cresce em direção às ruas é importante porque existem coisas que crescem para outras direções. As raízes, por exemplo, crescem em direção ao fundo da terra. As árvores crescem em direção ao sol. Já os fios elétricos dos postes de luz crescem para os lados sobre as nossas cabeças. 

Um dia sem nada para fazer o dono do apartamento fotografa o gato com o celular. Algum tempo depois toma um susto ao encontrar a foto nos arquivos. O susto ocorre porque o gato era muito pequeno no dia que a foto foi tirada. Mas, principalmente, o susto se dá porque o dono do apartamento não viu o momento exato em que o gato cresceu. E o gato cresceu. Cresceu em direção às ruas da CB. 

É inútil argumentar contra o crescimento de um gato, assim como é inútil se espantar com a diferença em seu tamanho em um dado intervalo de tempo. Um gato cresce. Um gato vivo cresce porque precisa crescer. Se não cresce é porque está morto e, dessa forma, não é um gato vivo. Para todo gato vivo: um crescimento.  Esse gato cresce em direção às ruas da CB. 

Um gato recém morto ainda é um gato. No entanto, em poucos dias entrará em decomposição e deixará de ser um gato. Por isso é importante saber que quando se lê "gato" nesse esboço fenomenológico deve-se ter em mente um gato vivo. 

Não se pode notar o crescimento do gato. O que se pode fazer é comparar o tamanho do gato hoje com o tamanho do gato em uma foto antiga em que o mesmo gato apareça. É importante que seja o mesmo gato. Seria ridículo querer comparar o tamanho de um gato usando a foto de outro gato. Mas também é impossível observar em tempo real o movimento crescente de um gato vivo. 

Quem não é um gato que espia apela janela de um apartamento as ruas da CB não tem direito de ficar sua existência inteira sem fazer nada enquanto acontece o próprio crescimento. Nesse caso o que se pode fazer é ficar entediado e fotografar o gato com o celular. No entanto, a foto retrata o estado atual do gato e não o processo de desenvolvimento pelo qual o gato passa. O pensamento não vê mas ele deduz: o gato cresce. 

Essa conclusão do pensamento é inobservável. Porém o pensamento pode provar que o gato cresce. Basta recorrer às técnicas científicas com seus procedimentos forjados em laboratórios. O olho nu é incapaz de ver o gato crescer, mas ele cresce. 

A foto antiga do gato pode ser uma prova empírica do crescimento do gato. No entanto, ela precisa passar por uma rigorosa análise para se saber se não sofre de alguma fraude. O dono do apartamento sabe que a foto antiga do gato não foi alterada. A foto antiga do gato não é uma fraude. O gato cresce. Mesmo que ninguém veja. Cresce para fora do apartamento. Cresce em direção às ruas da CB. 

O gato está na janela. Mas o gato está na janela assim como a tela está na janela? O gato está na janela mas parte dele não está mais na janela. e isso porque o gato cresce para fora da janela. 

O gato quando escuta alguma coisa vindo lá de fora se inclina na janela e parece que tem intenções suicidas.  Porém é o oposto o que ocorre: é uma vontade de viver mais e melhor. E isso não quer dizer que o risco de morte não exista. Por isso são importantes as telas na janela do gato. 

O sujeito que é capaz de deduzir o crescimento do gato também é capaz de deduzir que o gato gosta de viver. Ele pensa que talvez haja uma justificativa para o gato se inclinar tanto para fora da janela e essa razão não é dar fim a si mesmo. 

Embora o gato olhe tanto para as ruas do lado de fora da janela, é mais provável que seu desejo seja viver mais e melhor e não se matar. Senão ele não estaria cada dia mais amarelo. É o impulso de viver mais e melhor que leva o gato a se arriscar tanto na janela olhando para as ruas da CB. 

O gato até gostaria de passar pelas telas e escapar. Ele quer ficar mais e mais perto das ruas. O gato não quer mais viver apenas dentro do apartamento. O gato cresce para o lado de fora. O gato tem esperança e está motivo. Por isso o gato está feliz e amarelo. O gato está cada dia mais perto de salta e por isso vive cada dia mais e melhor. No entanto, se tudo continuar como está, o gato nunca irá fugir. 

Em todo caso, uma possibilidade de viver mais e melhor chama o gato para as ruas da CB. 

domingo, 20 de julho de 2014

a vida é uma festinha de criança 
que a gente leva salgados num potinho amarelo
um potinho com tampa que não encaixa 
e torce para alguém comer 
eu só trouxe para você
os meus salgados no potinho amarelo 

a gente se perde na vida 
como quem acorda no meio de uma hipnose 
pensando que hoje 
é ontem 
ou semana que vem 

a gente se perde 
na vida 
como quem dorme num filme 
que acabou de começar





domingo, 13 de julho de 2014

V de Vampiro

Depois da meia-noite é a noite inteira. A hora viva sem luz do sol é quando os ratos e as baratas já podem andar sobre os pratos sujos esquecidos na mesa de jantar, os grilos podem cantar sem timidez e os cães  abandonados devoram restos de carniças pelas calçadas das avenidas centrais. É aí que o sino da igreja não toca para mais ninguém. As nuvens não fazem mais sombra. É a hora sem sombra que também é a hora mais sombria. Tudo aqui é assombrado. O valor do dinheiro deixa de brilhar, as poças da rua não refletem a luz da lua e as pessoas se camuflam e se transformam em partes da noite. Essa é a hora e as vez dos esquecidos, quando vem à tona tudo o que não é certo; é o tempo das verdades desveladas. Aqui nessa hora não há cansaço e nem esperança: só exaustão e agonia. Os zumbis com dentes de morcegos, vencidos pelo tédio, são obrigados pela noite a satisfazerem seus instintos. E são muitos e muitos os que saciam os seus impulsos sem questioná-los. Há um despertador em cada uma dessas criaturas, e todos tocam o alarme da fome. E eles saem, como zumbis, atrás de sangue. Perambulam pela noite atrás da carne preferida. E como quem corre contra o tempo, eles tem pressa em sua caçada. Mas, inteligentes como um gato frente ao rato acurralado, eles sabem aguardar o precioso momento do bote. Enquanto aguarda, o caçador morto-vivo estuda com precisão milimétrica os traços da caça: como ela se comporta, seus medos, seus contornos, seu sangue correndo pelas veias, sua pela macia e fresca, pronta para ser mordida. Mas esses homens morcegos ainda possuem o dom da linguagem e usam a palavra como flecha. São sedutores e usam as palavras para distrair e atrair a presa. E esse zumbi com dentes de morcego sorri frases doces para seu alvo. E com muito talento, ele faz com que a caça queira ser a presa em suas mãos. Como um menino sonâmbulo, eles deseja, sonha, projeta e realiza. A caça inclina seu torso e o zumbi morcego lhe toma o corpo. E depois a alma. Agora o corpo e a alma do caçado são do caçador. O sonâmbulo, o morcego, o zumbi: o vampiro. E o corpo caçado vai sendo devorado boca a dentro. A boca se abre e se faz porta para o sangue que entra. E outros caçadores, outros zumbis, outros morcegos famintos ficam com inveja e com vontades e também querem ceder ao impulso que precisa ser saciado.  

Dedicado a Angel Angelus 

segunda-feira, 7 de julho de 2014

Os professores se pudessem comeriam o nosso cu

Os professores nos pedem trabalhos, artigos, teses e relatórios. Mas o que querem mesmo é comer o nosso cu. E comeriam. Se pudessem. Só não comem porque não podem. Não podem poque são velhos. O tempo deles é o do medo e dos prazos. A nosso tempo é da pele e da rapidez. A mão dos professores tentam. E quando tentam pensam em nossas bundas lisas. De vinte e poucos anos. E por mais que tentem, não conseguem. Eles veem nossas pernas nas nossas motos. E nossas tatuagens nos braços. Os professores não conseguem falar a nossa língua. Eles já perderam os dentes. Esqueceram as palavras. Não entendem as gírias. São lentos e nossas motos passam rápido. Eles perdem a chance de passar a mão. Na gente. As mãos dos professores não servem para nada. Já estão sozinhos, os professores. A fama de foda dos professores já acabou. Às vezes no escuro os olhos dos professores brilham. E eles imaginam uma putaria com os alunos de hoje. Com a gente. Com nossas motos e nossas tatuagens. E nossas bundas de vinte e poucos anos, quase nunca metidas. Às vezes nunca mesmo. Ou é mentira. E aí os professores ficam no escuro. Não desistem. Tentam apertar as nossas carnes. Às vezes um de nós os procura. Por bolsa. Por dinheiro, como sempre. Ou fama. Por dinheiro tudo bem. Mas os professores têm medo de um de nós matá-los. Por dinheiro, como sempre. Ou fama. Por dinheiro tudo bem. E alguma maldade. Por isso preferem andar escondidos pelas ruas. Enquanto observam nossas pernas nas motos. E nossas tatuagens nuas. E nossas bundas quase prontas. Com poucos pelos. E depois preferem voltar sozinhos para casa. Sempre sozinhos. No escuro. Com seus olhos que brilham. Pensando em nossas bundas. Olhos brilhantes e sozinhos. Os olhos dos professores não secam. E o desejo no brilho dos olhos podemos notar. Tipo um peixe se debatendo fora d'água. O último debater-se do peixe é a vontade de comer o nosso cu. E os olhos dos professores imaginam os nossos corpos sem escamas. Os professores nos olham e refazem o caminho do desejo. Tendo as mãos como mapas. E as peles pelancas que sobram. Querem voltar a respirar. Ter um último fôlego. Dar um último trago. Querem putarias no escuro. Velhos safados. Querem a mim e a você. Querem comer o nosso cu com nossas motos. Querem beijar e morder nossas peles tatuadas com caveiras. As bundas dos professores não existem mais. Não como o pau. Secaram e sumiram. Se existissem, as bundas dos professores suportariam o mundo inteiro. Só precisariam de um cuspe para ajudar. Seria cuspir e meter. Mas não existem. Se um de nós tentasse. Por muito dinheiro ou desejo. Por dinheiro tudo bem. Não conseguiria. Sob os olhos dos professores, nós estamos. No maior escuro. Os olhos lembram das putarias. E imaginam outras. Com a gente. Comigo e com você. Por cima, das lembranças. A gente de costas e eles por cima. E nunca o contrário. Por cima das motos, gemendo e uivando. Os gritos dos professores na hora da imaginação provam uma coisa. Provam que alguma coisa permanece. Que a putaria permanece. E com força. Permanece pelo menos na imaginação. Que é mais forte que o próprio corpo. Ou quase. Mais pelo menos que a agilidade das mãos e do pau. Porque as mãos e o pau morrem antes da imaginação nos professores. O pau e as mãos se esforçam e se debatem e se atrasam. Quase desistem. Nos professores o pau é mais velho que a imaginação. Sobre nosso cu. E motos. E tatuagens. E vinte e poucos anos. E agora no escuro os professores. Sem os cuspes de suas bocas. Sem a carne de suas línguas. Só com o brilho dos seus olhos. Querem comer o nosso cu virgem, ou quase virgem. Por uma só razão. Porque estão velhos. Só não comem porque não podem. 

quarta-feira, 2 de julho de 2014

Uma das razões que torna difícil esquecer uma pessoa é o fato de que muitas coisas do mundo exterior que  havíamos partilhado com ela, aos quais ela ainda está ligada, insistem em sobreviver. Um café pode fazer lembrar da forma delicada que ela segura a xícara e leva até a boca para beber. Uma ida ao supermercado pode fazer lembrar das bobagens que os dois gostavam de comer juntos. Caminhando pela rua cheia de bares no fim da noite, você pode lembrar ter passado pela mesma rua e pelos mesmos bares, mas com ela ao seu lado. Beber em um bar e olhar para um garçom pode evocar a forma tímida e linda com que ela chama o garçom para pedir alguma coisa. O livro emprestado na estante é um lembrete do gosto em comum por certo tipo de literatura meio alternativo. Certos dias da semana, em que costumavam fazer coisas juntos, fará sempre uma relação agonizante entre passado e presente. Algumas séries assistidas juntos fazem lembrar até a forma que ela ri ou coloca a cabeça no encosto do sofá quando está cansada. 

É o mundo físico que se recusa a deixar esquecer. O mundo exterior não obedece a nossa vontade. Os bares e as ruas, que haviam fornecido o pano de fundo para o começo do sentimento, neles nós projetamos luzes que derivam da pessoa que queremos esquecer. As mesmas ruas, os mesmos lugares, o mesmo céu azul, as mesmas casas, os mesmos carros que passam pela mesma rua, as mesmas lojas vendem as mesmas roupas para praticamente as mesmas pessoas. Toda essa recusa de mudança é um lembrete de que o mundo é qualquer coisa que não se importa com o fato de você estar apaixonado ou não, de se você quer esquecer ou não e de se você está feliz ou não. 

Não podemos mesmo esperar que o mundo exterior, com esses grandes blocos de pedras que formas as ruas da cidade, se importe com o nosso desejo de esquecer e superar. A solução é apenas uma: todo esse cenário que foi forjado em torno de um "nós" tem que voltar a envolver apenas um "eu", mesmo que isso implique uma mudança completa do eu envolvido.