Débora acordou naquela quarta-feira surpresa por seu marido, Sérgio, não estar na cama. Não é que ela tivesse perdido o horário ou algo assim, afinal era a hora que ela sempre acordava nos dias de semana, mas justamente aquela manhã -- a manhã em que tudo começou -- foi uma das raras manhãs em que seu marido acordava primeiro, fazia o café e preparava o filho para a escola.
-- Caiu da cama, é, Sérgio? -- perguntou com ironia sentando na mesa para o café.
-- Haha, não foi isso. Tive um sonho estranho e acabei perdendo o sono.
-- Hum, que tipo de sonho?
-- Ah, nem lembro direito. Dá uma provada nesse suco de laranja que eu fiz, tá muito bom.
-- Hoje acordei com vontade de refrigerante, Sérgio. Ainda tem aquela Pepsi na geladeira?
Ao terminar de falar, Débora sentiu o suco de laranja de Sérgio escorrendo pelos seus cabelos, escorrendo na sua cara, lambuzando todo o seu rosto.
--Sérgio, que merda é essa? Você virou suco de laranja em mim?
-- Puta que pariu, Débora? Pepsi? Você sabia que a Pepsi utiliza células de fetos abortados para adocicar seus refrigerantes? Ora, porra, virou abortista agora, sua chupadora de pica da Dilma? Eu deveria pegar esse suco de laranja e enfiar no meio desse teu cu.
Não foi a primeira vez que Débora discutia com seu marido e terminava com um suco de fruta na cara. Na verdade, foi a segunda: os dois haviam se conhecido quando Débora ainda trabalhava como garçonete em um restaurante para pagar a faculdade, e foi nesse cenário que ela teve pela primeira e única vez suco de fruta jogado na cara pelo seu marido. O novo eram todos aqueles palavrões, pois Sérgio, até então, era um cara bastante educado e cordial. "Essa cara endoidou? Bateu a cabeça na cama e ficou retardado? Só pode. E esse papo de abortista?" -- pensou Débora enquanto subia a escada para se arrumar para o trabalho. Depois de voltar, ela viu que Sérgio estava usando óculos daqueles tipo de vôzinho, o que nunca tinha acontecido até aquele dia. Decidiu cutucar o marido e perguntar se ele não achava que alguma coisa estava diferente. Sem jeito, Sérgio não soube explicar a razão dos óculos e apenas tentou convencer a esposa de que isso era normal.
-- Ué, eu sempre reclamei de problemas na visão. Você que não presta atenção no que eu digo.
"Acordou retardado, só pode", pensou ela, "na certa teve um sonho tarado com alguma das estagiárias e tá com vergonha de me encarar, só pode estar escondendo algo. Ah, mas eu vou descobrir, ah se vou".
No carro, o trajeto dos três (Sérgio, Débora e o filho Felipe) era sempre o mesmo: Felipe era deixado na porta do colégio, Débora ficava na agência de publicidade na qual trabalhava e Sérgio seguia para o escritório. Entretanto, naquela confusa manhã, um menino de rua fazia malabarismo com bolinhas e atrapalhava a movimentação do trânsito em que estava o carro da família. Os demais motoristas presos na rua parada já buzinavam quando Sérgio, bastante nervoso, botou a cabeça para fora da janela e começou a xingar.
-- Puta que me pariu, só que me faltava um zé buceta desses estragar o meu dia. Esquerdista do caralho, libera logo essa rua. Tá com pena, Débora? Adota pra ti e leva pra casa, ora porra.
O casal sempre evitou usar palavrões na frente do filho pequeno e a cena deixou Débora bastante assustada. Agora ela estava de fato preocupada com o comportamento do seu marido. Foi quando Sérgio, sem parar de dirigir, tirou um cigarro do bolso, acendeu e começou a fumar. Débora não entendia mais nada, parecia que seu marido tinha acordado outra pessoa.
-- Desde quanto tu fuma, Sérgio?
-- Deu vontade e comecei, não posso? Ou vai dizer que tu acredita nessas informações aí que dizem que o cigarro faz um tremendo mal à saúde? Isso aí é papinho de comunistinha de merda que tem o monopólio dos meios de comunicação em massa e os utiliza para criar as condições políticas para se perpetuar no poder e impedir um espaço de ação da oposição de direita.
-- Sei, Sérgio, sei bem o tipo de oposição de direita que tu é.
-- Anda logo seu cagão de merda, libera logo essa rua, petista de bosta -- Sérgio voltou a gritar com o malabarista de rua, enquanto apertava a buzina repetidamente.
Débora resolveu puxar o marido pelo braço, para olhar em seus olhos e pedir que ele se controlasse, pois o menino Felipe estava vendo todo o escândalo do pai. Pouca não foi a sua surpresa ao ver que Sérgio havia ficado com o cabelo todo grisalho de uma hora para a outra.
-- Pai, por que seu cabelo ficou igual ao do vovô?
-- Sérgio, você não está bem. Vira a esquerda agora e vamos direto para o hospital.
-- Para, Débora, nunca me senti melhor. Na verdade até gostei da nova cor dos meus cabelos, passa mais credibilidade e combina com meus óculos.
-- Você tá bem mesmo, Sérgio?
-- Tô ótimo, amor, ótimo. Débora, você sabia que o Obama na verdade é um agente comunista muçulmano infiltrado para destruir a democracia dos Estado Unidos e o todo da cultura ocidental?
-- Só dirige, Sérgio, só dirige.
Sérgio voltou a gritar palavrões para o menino malabarista. A expressão de Felipe era de visível pavor, e Débora não podia acreditar no que via: seu marido, com quem ela era casada há quase dez anos, estava se transformando, diante dos seus olhos, em um Olavo de Carvalho.
-- Sérgio, por favor, olhe seu rosto, você está diferente. Vamos para o hospital, estou pedindo.
Sérgio acabou concordando.
xxx
No hospital, Débora explicava para a recepcionista, que anotava tudo em um computadorzinho velho, a súbita mudança de comportamento e de aparência do marido. Depois o casal foi finalmente chamado para a salinha em que o médico de plantão atende seus pacientes.
-- Ai doutor, socorro... -- disse Débora logo que pôs os pés na sala.
-- Ora porra, o senhor não é cubano, né, seu estojo de pica? Eu não apoio trabalho escravo, que ajuda a financiar a ditadura sanguinária dos irmãos Castros, mesmo nesse circo que é o Brasil -- disse Sérgio logo depois.
Ao ouvir a negativa do médico, Sérgio começou a gargalhar de uma forma histérica. Débora, morrendo de vergonha, tinha vontade de se esconder embaixo da caminha em que deitam os pacientes. O doutor, que ao ler a ficha médica do paciente tinha ficado descrente, começou a ficar preocupado com a situação de Sérgio.
-- Ele está assim desde que acordou, doutor. Eu não sei mais o que fazer. Ela tá virando, meu deus do céu, um Olavo de Carvalho: fala palavrões, diz que tem um golpe comunista acontecendo no Brasil, fala coisas terríveis da USP, diz que ninguém pode debater com ele porque ninguém leu tudo o que ele leu. Eu tenho certeza que ele está virando um Olavo de Carvalho, certeza.
-- Calma, moça, é cedo para afirmar qualquer coisas e eu nunca ouvi falar de gente virando Olavo de Carvalho da noite para o dia dessa forma. Não creio que haja no mundo uma doença que faça isso com as pessoas. Tem certeza que ele não faz isso por conta própria?
-- Impossível, doutor, quem em sã consciência agiria assim, feito um completo idiota?
Sérgio havia se deitado na cama e roncava alto. Débora não acreditou que seu marido havia caído no sono assim tão rapidamente em um hospital e deu um grito, chacoalhando-lhe pelos ombros. Sérgio saltou da cama com um pulo e começou a gritar:
-- Puta que me pariu, já começou o golpe, começou? Maldita estratégia gransciana para tomar conta da cultura do país, bando de filhos de uma cadela!
-- Ele está pior do que eu imaginei -- comentou o médico, enquanto pegava alguma coisa em sua maleta -- Desculpe, senhora, mas terei que sedá-lo e depois darei alguns telefonemas. Provavelmente passará a noite aqui para observação.
Sérgio foi colocado sedado em uma cama, enquanto Débora tentava descansar no sofá apertado de quartinho de hospital. Após algumas horas de silêncio, Sérgio se levantou para usar o banheiro. Débora se ajeitou no sofá e ficou esperando o marido voltar. Quando o marido saiu do banheiro estava irreconhecível: seu rosto estava completamente mudado, suas roupas estavam transformadas e sua voz havia mudado drasticamente. Sérgio tinha se transformado completamente em um Olavo de Carvalho.
-- Meu deus do céu, Sérgio...
-- Sérgio, não. Meu nome é Olavo. Olavão, o terror dos comunas hehe. Adeus.
Essas foram as últimas palavras de Sérgio que depois saltou pela janela do quarto, quebrando o vidro e xingando sua esposa e dizendo que ela não havia lido toda a sua obra filosófica. Atônica, Débora correu pelos corredores do hospital atrás do médico responsável, mas quando entrou na sua salinha sem bater na porta, viu que no lugar do médico estava um outro Olavo de Carvalho. Débora fecha a porta, completamente desesperada, e, ao se virar, choca-se com a enfermeira, que estava segurando uma folha de papel cheia de anotações e que jurava ter refutado a lei da gravitação universal de Newton.
"Deus do céu, é o começo do fim" -- pensou Débora antes de sair correndo do hospital que já começava a ficar cheio de Olavos de Carvalho.
Nenhum comentário:
Postar um comentário