Enquanto coisinhas vivas dotadas de afetos e racionalidade, nós humanos somos abençoados com o desejo da criar. Das diversas criações humanas, podemos dizer que umas expressam o nosso fracasso e, outras, o nosso sucesso. O fracasso e o sucesso observáveis nas coisas que criamos no mundo dizem muito sobre nosso modo de ser mais mongolóide e sobre o que temos de melhor enquanto humanos, na medida em que escancaram tanto as nossas mocoronguices quanto o que temos de mais bonito. Esse infindável jogo de erros e acertos resulta em coisas bonitas, coisas feias, coisas profundas, coisas toscas, coisas ruins e, às vezes, coisas gostosas.
Das criações-fracassos podemos citar como exemplos as filas para banheiro, as guerras, a epistemologia social, os bigodes fakes, o processo de locar um apartamento em Porto Alegre e os ventiladores de teto. Das criações-sucessos, podemos mencionar a cidade de Ijuí, a novela Kubancan, o volante camisa 5 que sabe sair jogando sem descuidar da marcação, as cartas de amor, o conceito de "ser" e, por fim, o bolo de chocolate Nega-maluca.
É importante destacarmos que o sucesso ou fracasso de uma criação humana não dependem de sua popularidade, mas sim do grau de disposição para o avanço da experiência humana que ela pode propiciar. Por isso, um fracasso pode resultar num sucesso e um sucesso pode se mostrar, com o tempo, um fracasso. Dessa forma, algumas criações são fracasso-fracasso, enquanto outras são fracasso-sucesso, e o contrário também vale. A novela Kubanacan, por exemplo, é um sucesso-sucesso porque além de fascinante e cheia de pessoas bonitas e talentosas, ela nos instigou muitas reflexões em busca de nós mesmos e do que somos capazes de fazer depois dessa suposta tomada de consciência. Kubanacan nos colocou as questões fundamentais: Quem realmente somos? O que fazemos com isto que somos? Estamos vivendo a melhor vida que podemos viver? Estamos tornando o mundo um lugar melhor ou pior ou tanto faz?
Todos esses acontecimentos não seriam possíveis sem a frágil presença da figura humana. Tudo o que não surge espontaneamente em florestas, galáxias, mares e ares depende forçosamente da interferência do ser humano, essa espécie dúbia, esse animal não-catalogado ancorado entre o mistério fantasioso do que ainda não se sabe e a superfície burocrática das coisas nomeadas. O homem é no mundo, mas ele não se contenta em apenas estar no mundo, ele quer fazer o mundo -- e o foda é que ele faz. Às vezes isso é legal, divertido e até emocionante, outras vezes é só sem-noção, vergonhoso e meio deprimente.
Pelo menos nessa porrinha azul que nós chamamos de "Planeta Terra" é a humanidade que investiga, pesquisa e cria. Fazer o mundo: grande poder. Olhamos, compreendemos e superamos nosso mundo-circundante. Foi a humanidade que observou as montanhas mais bonitas espalhadas pelo mundo e resolveu superá-las de um jeito muito mais divertido, dando sabor e doçura à criação: criou-se assim o que viria a ser o bolo, outro exemplo de sucesso-sucesso.
Assim como vários outros exemplares da espécie humana detentores da coceira do conhecimento já se debruçaram sobre a questão de o que faz uma coisa X ser uma coisa X e não uma coisa Y, é possível elaborar uma investigação fenomenológica do melhor tipo de bolo que existe: a Nega-maluca. Por que existe a Nega-maluca? De onde ela veio? Para onde ela vai? Quem ela é? Quem a criou e o que pensou ao criá-la? Será que foi tudo um acidente? Como explicar seu sabor? Quais e como são suas moléculas? Como se agrupam e como se dissolvem? Por que fazem assim e não de outro jeito? Como se deu a trajetória da primeira Nega-maluca até a atual proliferação de docerias, padarias e tortarias?
Meu empenho mais recente, enquanto Dasein explorador daquilo que emerge da fenda da existência sobre a qual flutuamos com angústia e inquietação, tem sido a investigação sobre os modos de ser da Nega-maluca. Em minhas pesquisas de campo, tenho encontrado tipos diversos e genuínos. É claro que não são todos que se enveredam pelo caminho do bolo de chocolate. Tipos diferentes de bolos não faltam: bolo de morango, bolo de cenoura, cupcake, bolo de banana, bolo de milho, bolo gelado de abacaxi. Justifico minha preferência pelo bolo de chocolate, o tipo mais artificial que existe, pelo fato de que os bolos de fruta ainda se manterem entre aquilo que explode no mundo como acontecimento não-humano (as frutas) e o que a nossa criatividade humana é capaz de forjar (o bolo). Os bolos de frutas ainda são fortemente um retrato de nosso modo de ser preso ao mundo, em que nos relacionamos apenas com o que nos é dado de forma imediata, faltando-lhes a transcendência metafísica do bolo de chocolate. Por outro lado, a Nega-maluca é a Torre Eiffel das experiências bolísticas (e se eu quisesse o sabor de uma fruta eu iria lá e comia a própria fruta). É dessa forma que a Nega-maluca nos coloca em um jogo fenomenológico de longe-perto, velar-desvelar. Podemos colocar da seguinte forma: quem não gosta de bolo não tem mundo, quem gosta de bolo de banana é pobre de mundo, quem gosta de Nega-maluca é formador de mundo.
Temos ainda que destacar o "estado de ânimo" vinculado à experiência da Nega-maluca. Não há e nem é possível que haja um pessimista capaz de manter-se enquanto tal ao consumir uma autêntica Nega-maluca. Comer esse bolo de chocolate paralisa nosso cérebro e descansa nosso corpo da habitual ênfase no fracasso da experiência humana em todos os tempos e lugares -- o que abarca desde o esquecimento do ser nos dispositivos tecnológicos da civilização moderna até mesmo as experiências traumáticas de relacionamento, derrotas do time de futebol e a incapacidade imponderável de comunicação que nos isola em solidões incontornáveis. Tendo à mão uma Nega-maluca, ninguém consegue ser absolutamente fatalista. Simplesmente paramos de questionar pela razão do que há de errado no mundo e pela origem da culpa na eterna expulsão de nosso Paraíso natal que é a vida humana.
Por isso, é indispensável que, enquanto Dasein, avancemos no fortalecimento da Nega-maluca. Precisamos pensar na criação de um mundo feito de Nega-maluca como um rumo belo, mas sem linha de chegada, porque é sem limite. Avancemos, humanos, avancemos.
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