quarta-feira, 14 de novembro de 2012

O menino e a menina

Este post não tem sentido. 
Este post não tem cores. 
Este post não fala de crianças. 
Ele não trata do Chalita e nem do Pescador Parrudo. 
Ele é a quase desejada despedida, é a margarida no portão. 
Esse post é o suspiro de alívio, é a criatividade sem razão.
Ele é tudo o que eu tive e já perdi. 

Num bar, um menino e uma menina ocupam uma mesa e conversam.  O menino não sabia se gostava da menina porque ela era bonita ou se ela era bonita porque ele gostava dela. A menina, por sua vez, olhava para o menino enquanto ele falava sentado à sua frente e se perguntava por que seu desejo escolheu se acomodar justamente naquele rosto em particular, por que naquela boca e naqueles olhos tão singulares. 
Chega o garçom.

Menina (para o garçom): Eu quero um guaraná com uma rodela de limão, por favor.
Menino: Guaraná com limão? Ninguém toma guaraná com limão.
Menina: Eu tomo guaraná com limão. Eu sou alguém. Logo, alguém toma guaraná com limão. 
Menino: Mais de um ano te conhecendo e você ainda me surpreende. Cada dia é uma surpresa. É incrível como você consegue ser diferente nas pequenas coisas, no jeito de ver as pequenas coisas do mundo. 
Menina: E isso é ruim?
Menino: Ruim? Eu não sei. Acho que não. Às vezes sinto um pouco que sim, mas sei lá. Acho que não. 
Menina (do nada): Até quando?
Menino (surpreso): Como? 
Menina (séria): Até quando suportaremos o olhar um do outro?
Menino (sério): Por que essa pergunta agora?
Menina: Não sei, só por perguntar. É que eu acho que me pertences demais. Vai ser estranho o dia em que eu não puder mais te abraçar. Como essas nuvens lá em cima, no céu. Você já pensou em como seria o céu sem as nuvens? 
Menino:  E um céu sem estrelas, então?
Menina: Será que eu ainda consigo olhar pra chuva e não pensar em ti?
Menino: Eu não sei.
Menina: Eu também não sei. 
Menino: Se eu pedir um abraço, você me dá? 
Menina: Dou, eu sempre dou. 

Menino e menina se abraçam. 

Menino (tirando um papel dobrado do bolso e entregando para a menina): Cada coisa que eu escrevo ou é sobre você ou é pra você. Eu sei que no fundo é sobre mim. Ou sobre o abajurzinho que estou tentando comprar e nunca dá. Mas ainda assim é sobre você. Sobre sua mania de comer até a barriga doer, sobre sua mania de tomar vinho e ficar sempre com o canto da boca manchado de vermelho. Eu queria que você escrevesse algo pra mim. Você já escreveu para outros. Então por que não para mim? 
Menina: Sei lá, acho que porque...
Menino (interrompendo): Eu sei a resposta: "porque não é preciso". Você sabe que já me ganhou inteiro, sabe que eu te quis desde que caminhamos juntos aquela noite e rimos bastante até bem tarde.
Menina: Não é bem assim...
Menino: Você só queria um pouco de sexo fácil naquela época...
Menina: Agora eu sei que isso nunca há. Pelo menos não para os românticos que se apaixonam o tempo todo, como a gente. 
Menino: De qualquer forma, naquela época eu ainda era algo raro, algo necessário. Hoje em dia, a raridade é quando eu não acaricio o seus cabelos no meio da noite.
Menina:  Acho que pra você o amor é o bastante. Mas para mim, não. Pra mim ele é demais. 
Menino: E você nunca lê o que eu escrevo. Até o jeito que eu escovo os dentes é para você notar. Mas você faz sempre questão que faça isso com a porta fechada. 
Menina: O nada e o pó. Do pó ao nada, do nada ao pó e o nada ao nada e o pó ao pó e o nada nada e o pó pó e o nada o pó e o pó e o nada e nada, nada e nada. 

O menino e a menina ficam bastante sérios e tristes. O Garçom volta com as bebidas e logo sai. 

Menina: Mas eu não me canso de você. É manhã, é noite, e eu não me canso de você. Eu canso do toalha em cima da cama, canso das roupas atiradas, canso dos calçados espalhados,  canso da louça suja, mas não de você. Eu não me canso de você. Canso da música alta, da falta de grana no final do mês, da sujeira do apartamento, mas eu não me canso de você. Eu canso é de cada pedaço do meu corpo que você não toca mais, canso da mesma posição todas os dias. Mas eu não me canso de você. Eu canso até de cada  olhar seu, de cada gesto seu, e canso também de cada gesto meu. Mas eu não me canso, nunca, de você. 
Menino: É que às vezes me dá uma dorzinha aqui dentro, sabe? Ela começa pequenininha e vai crescendo e crescendo. Você nem nota. Ou finge que não nota. Eu prefiro acreditar que você não nota, para que não doa mais. 

A menina se inclinou e pegou o copo na mesa. Bebeu um gole de bebida e tragou do ar fresco da noite de pós-chuva. Era o jeito que tinha de acalmar o coração. Mas era tarde. Ela estava tensa. Seus gestos denunciavam. Queria, se pudesse, liberar tudo aquilo que estava dentro de si. Vida lenta, decisões demoradas, amores fracassados. Tudo de novo. Sempre sobra quase nada. Não havia mais saída. Ela só não queria chorar. 

Menino (puxando uma flor): Eu lhe trouxe uma flor.
Menina (pegando e olhando para flor): Ela é bem azul, né?
Menino: Sim, bem azul.
Menina: A gente vai se ver de novo, algum dia?
Menino: Não sei. Não é tão simples assim. 
Menina: Mas nós vamos. Vamos sim, eu sei que vamos. Nós vamos. 
Menino: Talvez...
Menina: Pelo menos você vai lembrar de mim de vez em quando? 
Menino: Sempre. Todos os dias.
Menina: Todos os dias? 
Menino: Todos. Vou comprar uma flor azul no final de cada dia, para ajudar a não te esquecer. 
Menina: Como eu posso te mostrar o que eu sinto?
Menino: Só me dá um abraço.
Menina: O último?
Menino: O último. 

O menino e a menina se abraçam de novo. Depois o menino se despede e vai embora. A menina fica sozinha. E então tudo veio abaixo. Ela ficou sentada ali, enxugando o nariz e os olhos com a manga do casaco e torcendo para que ninguém ouvisse seus soluços baixinhos e doídos. Era como se tudo tivesse ficado retorcido e ela não conseguia pensar direito. Ainda mais com aqueles sons ao redor, com aquela música e aquelas conversas. A menina então desdobrou o bilhete que havia sido entregue pelo menino e leu em voz baixa:

"Você não é tão forte quanto imagina. Você é uma virgenzinha que não faz as unhas e nem passa creme no corpo. Você é uma moça do interior que suporta a cidade grande tristemente. Você é uma camponesa assustada que se esconde dos esgotos, das fumaças e da violência. Você é apenas mais uma no meio do barulho, só que você finge não ser derrotada.  Não aguente mais. Não aguente o tranco, a solidão, a falta de carinho. Não aguente mais. Não aguente mais a rotina igual, o apartamento-prisão, o quarto escuro, a louça suja sobre a pia, a falta de sensação, a falta de tesão. Não aguente mais. Faça o que eu digo, faça. Arrume a mala e vá embora. Volte para a família e para as pessoas especiais. Volte para a terrinha encantada, para a vida tranquila e livre, para o morro dos animais. Volte! Espero, sinceramente, que você encontre o caminho de volta para casa". 

Ela não entendeu. Na verdade, ela nunca entendia as coisas que ele escrevia. E a menina pensava tentando se animar:

"Vamos lá, deve ser só a flor azul. Vamos lá, cante uma canção, não deixe a música parar. Vamos lá, agradeça aos céus, agradeça ao nada! Ou então chore desesperadamente. Sinta as lágrimas, sinta o frio. Vamos lá, quebrem esse silêncio, apertem a minha mão. Ouçam as vozes, ouçam os gritos, voem como as mariposas. Vamos lá, pintem o arco-íris, comam cachorro-quente, tomem sorvete, lambuzem-se. Vamos lá, me libertem, não me esqueçam, por favor. Vamos lá, me socorram."

Volta o garçom. 

Garçom: A senhorita gostaria de beber mais alguma coisa?
Menina: Água, por favor. Só água, sem gás. Pura e simplesmente água. 
Garçom: Tudo bem, eu trago em alguns minutinhos.
Menina: Ah, moço, para acompanhar será que você poderia me trazer um pouco de lembranças? Das mais variadas: umas mais leves e outras mais pesadas. É que eu estou precisando comemorar. Vou embora, vou voltar para casa. E preciso de alegria. 

Ainda hoje, quando chove, a menina pensa no menino. Ainda hoje, quando vê uma flor azul, o menino pensa na menina.  Às vezes isso acontece ao mesmo tempo. 





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