terça-feira, 31 de outubro de 2017

Uma ontologia de nós dois

Eu existo, mas quase não existo. Você existe, e existe demais. Existimos em tempos iguais e em tempos diferentes. Você desde sempre existiu mais do que eu, você existe todas as horas, todos os minutos, todos os segundos; eu existo apenas uma ou duas vezes por semana e, em certas semanas, até me esqueço de existir. Você não esquece de existir nem naqueles momentos em que ninguém está prestando atenção em você, faz questão de existir independente do observador ou do discurso. Nunca encontrei um momento em que você não tenha existido, e existido por completo.

Há quanto tempo você existe? Eu já perdi a conta.

Se você tivesse começado a existir poucos anos atrás, eu teria escrito o seu nome vinte e três vezes numa folha de papel em branco e prendido com imã na porta da geladeira. Neste tempo eu não teria que me preocupar em refletir sobre sua ausência ou sua existência. Ficaria satisfeito em saber seu endereço, seu apelido e o nome de sua melhor amiga, ficaria feliz em apenas existir paralelamente.

Mesmo sendo mais jovem, você existe há mais tempo que eu. Porém, não existiu na hora certa, você teimou em existir de um jeito errado, resolveu existir por cima de mim, cobriu minha existência com a tua e eu não consegui existir neste espaço apertado que sobrou. Eu não sou capaz de deixar de existir mais do que já não existo para abrir espaço para você existir ainda mais. Nosso amor foi uma contradição ontológica.

segunda-feira, 16 de outubro de 2017

Todo mundo merece um primeiro amor

Todo mundo merece ter um primeiro amor. Todo mundo merece ser o primeiro amor de alguém. Um primeiro amor não tem nada a ver com o tempo. Não importa se veio antes ou depois. O primeiro amor tem a ver com, ao menos uma vez na vida, ser capaz de despertar um amor tão intenso e desesperado que, por cinquenta ou cento e cinquenta anos, será lembrado como o melhor beijo, o melhor cheiro, o melhor sexo, o melhor passeio de mãos dadas pela cb, as melhores gargalhadas, as melhores conversas. Isso é um primeiro amor. Todo mundo deveria poder ter a experiência de sentir o coração de outra pessoa bater tão forte, tão forte, como se alguém tivesse arrancado do peito e colocado em tuas mãos, te deixando responsável por, de alguma forma, manter a vida naquele corpo.

Todo mundo merece ter um primeiro amor. Merece alguém que bombeie o seu sangue e destrua uma a uma todas as suas pequenas ilusões. Merece que alguém tome posse de seus pensamentos e tome crédito pela sua existência. Merece cada respiração profunda que alguém é capaz de realizar e cada dilatação na pupila. Todo mundo merece olhares apaixonados durante o jantar e mensagens bêbadas e sacanas na madrugada. Todo mundo merece alguém que faça enxergar a sombra de um coelho na lua simplesmente por estar naquela companhia, todo mundo merece a primeira tentativa de escrever poesia para outra pessoa.

Você foi o meu primeiro amor, e  eu fui o teu primeiro amor. Trocamos segredos, suor e salivas de formas irreversíveis, nossos corações contraíram-se involuntariamente, fomos desestabilizado pela realidade, e acho que não existe forma de amarmos pela primeira vez novamente.

De qualquer forma, muito obrigado por ter sido o meu primeiro amor.

terça-feira, 10 de outubro de 2017

feliz aniversário

os livros da estante do meu escritório
não estão mais organizados pela cor
e estão cheio de digitais
de cada mão tua que tocou num livro meu
quando você virá buscá-las?
e cada dia que não troco os lençóis
-- nem mesmo as fronhas
porque eu sei que existem coisas tuas ali
delicadezas como o cheiro que escapa
do teu cabelo quando você prende
dia após dia
tenho medo e dúvidas
assim como você, eu sei
e não tenho outras coisas para colocar
nos espaços que ficaram
totalmente vazios
mas ainda sinto raiva
e estou com saudade
ainda não vi o teu nome passar
nos créditos finais
desse filme triste
feliz aniversário
quando você adormeceu
na primeira noite que passamos juntos
eu senti como se duas grandes asas
de um anjo se dobrassem sobre mim
fechei os olhos e dormi dentro do teu inferno particular
eu senti o ar que saia da tua boca
e compreendi finalmente a linguagem esotérica
desses pequenos deuses que sussurram segredos
através de olhos que se fecham em noites como aquela
eu segurei tua mão por baixo das cobertas
foi como segurar uma tocha ardente
naquela noite quente
eu entendi uma bela porção de enigmas
roubei teu fôlego e cataloguei distâncias
dormi séculos em dois instantes
e tu coube inteira nos meus braços
desde então farejo teu sono
diariamente sigo teus rastros
morrendo de medo de pedir para você voltar
(você volta?)
a tua voz já mora em meus ouvidos
o teu cheiro -- como chamas -- alastrou rapidamente
e quando você fechou os olhos
naquela noite de verão,
eu me perdi, incondicionalmente

a nossa história poderia ser 
uma música bonita de Belchior
nós de mãos dadas lendo os cartazes 
de um cinema na olaria 
ou escondidos num café 
no bairro agitado de uma cidade grande qualquer
o seu nome ainda não passou 
nos créditos finais 
desse filme triste