domingo, 14 de dezembro de 2014

Não sei se pego um ônibus ou se compro uma goiaba

-- Você vai mesmo comer esse pastel? -- perguntou Bruno para a menina sentada logo ao seu lado na pastelaria e que estava prestes a dar a primeira mordida num pastel. 

Perguntou mais para puxar assunto com a menina bonita, mas, caso uma troca fosse aceita, tinha uma goiaba na sua bandeja para oferecer em qualquer negócio. Bruno queria mesmo era comer um pastel de camarão, mas ficou nervoso na hora de pedir e pediu uma goiaba. Apesar do amplo salão da pastelaria estar muito silencioso e quase vazio, e apesar de Bruno ter feito a pergunta em alta voz e estando ao lado da pessoa, a dona do pastel não ouviu direito e pediu para ele repetir. 

-- Eu perguntei se você vai comer esse pastel -- disse Bruno agora maravilhado com o som da própria voz falando "pastel". 

Um homem que estava sentado a quatro mesas de distância de Bruno e da garota começou a rir até se engasgar com seu pastel e tossir. 

-- Nossa, você gosta mesmo de goiaba né -- disse a menina para Bruno, com muita seriedade. 

-- Oi? Eu não disse "goiaba" e eu disse"pastel", pastel -- voltou a gritar Bruno, fazendo novamente o homem, apesar das quatro mesas de distância, rir, engasgar e tossir. 

Bruno notou, ficou confuso e, sem saber que tipo de registro de voz usar, passou a sussurrar para a garota. 

-- Eu odeio goiaba, não suporto goiaba, nem sei por que comprei uma goiaba -- disse, amistoso e sorrindo, fazendo rolar, com a mão, a goiaba na bandeja. 

Nesse momento Bruno e a garota olharam-se nos olhos. Depois ele olhou para a bandeja dela, com o pastel intacto, e ela olhou para a bandeja dele, que servia de terreno para as roladas da goiaba. 

-- Pastel de goiaba. Eu comia muito quando era criança. É muito bom, não sei se tem aqui, mas você deveria experimentar -- disse a garota que depois só soltou um risinho pelo nariz. 

Para evitar um silêncio constrangedor, Bruno pensou em novamente fazer a pegunta sobre o pastel da moça, mas quando estava prestes a dizer a primeira palava teve que parar, pois só agora, ao prestar muita atenção na bandeja da menina, percebera que não se tratava de um pastel mas sim de outra goiaba. 

-- Moço, respondendo a sua pergunta, eu não vou comer minha goiaba -- respondeu ela brincando e girando a goiaba. 

Ele deu de ombros e continuou a conversa: 

-- É fascinante quanta coisa de comer dá para fazer com a goiaba.Tem doce de goiaba, tem o pastel de goiaba e a goiaba goiaba que é só a goiaba, como essa sua aí. 

-- Siiim, pastel de goiaba é super minha infância, adoro. 

-- Como se chama? 

-- Pastel de Goiaba mesmo, acho. 

-- Não o pastel de goiaba, você, Como se chama? 

-- Ah sim, Milena. 

A garota sorriu, perdida, tomada por uma profunda e completa falta de assunto. Bruno só conseguiu pensar em uma única pergunta para continuar a conversa:

-- E por que você não quer comer a goiaba? 

-- Distração. Que cabeça a minha. Só quando fui dar a primeira mordida vi que era uma goiaba. Queria ter pedido um pastel de camarão.  

-- Não seja por isso, Milena, pode ficar com o meu, trocamos -- disse Bruno passando a sua bandeja para a garota e pegando a dela.

-- Sério? Muito obrigada! Deve ser a primeira vez na história que isso acontece, que demais. 

Bruno concordou, sorrindo e enfiando a goiaba inteira dentro da boca. 


sexta-feira, 12 de dezembro de 2014

Com o pássaro do tédio no ombro

A Cidade Baixa se transforma em outra quando a gente ta entediado. É outra Cidade Baixa em que esperam em pé na porta de alguma boate algumas mulheres tristes que têm estrias e os olhos perdidos. É outra Cidade Baixa que desde o começo da noite arde com mil olhos que se queimam com tanta merda no ar e nos livros enquanto outros dormem tranquilos dentro dos prédios querendo salvar suas almas e a gente aqui na rua tentando perde-la. 

É outra Cidade Baixa. É um bairro aonde as pessoas tem os pulmões cheios de melancolia e de fumaça. A Cidade Baixa é uma enorme mosca que se debate sentindo o cheiro do veneno pesticida. Cidade Baixa: um caminho, um descaminho, um encontro, um desencontro, uma ilusão, uma deprê, uma alucinação. Cidade Baixa é o bairro dos borrachos, em que a serenidade verde dos parques dá lugar a agitação da paranoia. É também o bairro das drogas, da tosse e dos vômitos. Fumaça, muita fumaça. Barulho, muito barulho. Gente, muita gente. 

Cidade Baixa é um bairro de muitos bairros. Muitas mulheres, muitos homens, muitos nomes, muitos assaltos, muitos táxis. Cidade Baixa é uma cidade dentro da cidade dos chás e dos colecionadores de livros. Porto Alegre é a cidade do não, do de jeito nenhum, do isso não é certo, isso não se faz, não venha, não vá, não acabe, não comece, não beije, não ame, não odeie, não viva, não se mate, não e não. Cidade Baixa é o sim no meio de tanto não. 

É o bairro das crises, dos bares irregulares, do esconderijo para se fugir da neurose da cidade que dispara paranoias elétricas e fantasmas de frustrações; É o bairro de uma geração de jovens opaca e mutante que não quer entrar pela cidade pela porta da frente, pois, pelo contrário, quer tomar de assalto o coração da cidade, enquanto bebem, fumam e transam quando começa uma chuva esquizofrênica sobre as pessoas, sobre os gatos, sobre os cães, sobre os ladrões, sobre os moradores. 

Quando se está entediado a Cidade Baixe se transforma em outro bairro. Ali nada parece cair. Tudo parece estar sustentado por uma rede invisível que envolve todo o ambiente. Percebe-se um zumbido, como de uma mosca, que vai de mesa em mesa. É o tédio que sai de você e vai envolvendo todas as pessoas e que vai passando pelos ombros, transmitindo um tipo de doença: a doença do tempo que não para de passar. 

Enquanto a maioria  se encontra protegida em casa, outros se encontram no fundo do inferno. Cidade Baixa é a imagem do bêbado gordo esquizofrênico que caminha sem camisa em meio as mesas todas as noites, ou de uma mulher que passa todas as noites vendendo coisas em uma cesta vazia, tem também o cara que se veste de Chaplin todos os dias para vender flores e aquele que gosta de correr de sungas mas apenas quando chove. 

Bem-aventurados sejam os os bêbados, os garções, os cachorros que latem no meio das ruas, os polícias parados nas esquinas, os ladrões, os mendigos, os idiotas, os bares, os restaurantes japoneses, os gritos, os vômitos, as ciclovias, os supermercados, as galerias, Bem-aventurados porque deles será o reino do tédio. 

Quando a gente tá entediado, a Cidade Baixa se transforma num bairro onde as pessoas têm os pulmões cheios de melancolia e fumaça. 

segunda-feira, 8 de dezembro de 2014

Post para um amor platônico de Facebook

Estou olhando tua foto do perfil no Facebook. Você lê um livro bastante séria. Você é tão bonita que pensei, por algum momento, que tua foto do perfil fosse de algum seriado americano que não conheço. Mas é só você.  Procuro algum traço familiar, algo como uma tatuagem que signifique alguma coisa sobre teu jeito e sobre tua personalidade. Eu poderia me apaixonar por você. Poderia passar a noite no teu apartamento, poderia andar descalço até a cozinha, abrir a geladeira e tomar um gole de água fria direto da garrafa. Você também poderia se apaixonar por mim e eu contaria que escrevi esse post para você. E contaria que segui anonimamente teus sinais de fumaça. Contaria que te stalkeei. Nem teria medo de te contar tudo isso. E você finalmente leria aquele livro para mim. Vejo as fotos em que você foi marcada. Você é mesmo bonita. Estou olhando suas curtidas e acho que nosso gosto musical não combina. Olhei longamente alguns dos teus posts e vi um sobre feminismo. Só olhei. Não curti e nem comentei. Ele não dizia nada de muito importante, mas ele é um pedacinho de você, cada palavra escrita lá é um pouco de você, uma coisa que saiu das tuas mãos, que saiu da tua cabeça. Como um ar que saiu da tua boca e que posso respirar. Eu olhei tanto para esse teu post que quase me perdi dentro dele. Mas você não sabe disso, você nem me conhece, você nem sabe que eu existo. Pensei em comentar algo. Pensei em seguida que não iria adiantar nada. Eu poderia voltar para a cama depois de beber a água e te ver ainda dormindo e de olhos fechados, numa noite quase fria. Poderia sentir tua mão debaixo do cobertor. E pensaria que tudo começou quando vendo uma foto do perfil apanhei uma porção de enigmas, cataloguei distâncias (você mora em outro estado), segui teus rastros, farejei teus gostos. Quando você toda séria e linda segurou aquele livro naquela foto do perfil, eu me rendi, incondicionalmente. 


Triste, porém mais feliz que a maioria (o manual para o doutorando em Filosofia que veio do interior)

Fazer um doutorado em Filosofia vindo de uma cidade e de uma família sem nenhuma experiência acadêmica é uma aventura mental que só compreendem com exatidão aqueles que estão metidos nesse trabalho bastante peculiar. Tudo começa com perguntas estúpidas: você faz o quê mesmo? E então você responde orgulhoso: faço doutorado. A outra pessoa segue perguntando: Ah, que legal, vai ser doutor, médico, né? Nesse momento você precisa respirar fundo e então tem duas opções: 1) diz que sim, vai ser doutor médico e se despede da pessoa, desejando à ela um bom dia (mesmo que por dentro prefira que ela seja atropelada ao cruzar a rua) e 2) você diz que será um doutor em Filosofia. Quando se escolhe esse segundo caminho, a outra pessoa começa a olhá-lo de uma forma estranha e diz coisas do tipo: Você vai ser filósofo? Os filósofos no geral não são meio loucos e depravados? Ou diz coisas assim: Todos os filósofos que eu já ouvi falar eram alcoólatras, drogados, inúteis, vagabundos, revoltados que só arrumavam problemas. Bem, temos que reconhecer que em parte essa pessoa tem razão quando diz essa coisas. Inúteis e vagabundos? Sim, somos inúteis e vagabundos. Arrumamos problemas? De certa forma, sim. Dificilmente acreditamos no liberalismo, não acreditamos no conceito humano de "progresso", desconfiamos da democracia representativa dos partidos oficiais, desconfiamos das convenções sociais e não temos muito respeito pelas instituições tradicionais, como a igreja e os militares, e ainda não nos damos bem com os bons costumes. 

Por um momento nosso interlocutor ficará escandalizado e poderá dizer que somos imorais, comunistas, esquedistas, ateus, depravados e bêbados. "Você vai morrer de cirrose". Você poderia responder: e você vai morrer por ser tão idiota. Nosso interlocutor não compreendeu que a bebida é o melhor amigo de quem tem que escrever uma tese filosófica, nessas noites solitárias quando se está em frente ao computador, com diversos livros abertos em cima da mesa, e a página na tela do computador está em branco. O álcool nesse cenário se transforma num tipo de mar estranho por onde navegam nossas ideias, nossos conceitos e nossos argumentos. Algumas ideias se vão assim que acaba a cerveja. Outras ficam, permanecem. 

Se você é um doutorando em Filosofia e tem uma biografia um pouco parecida com a minha, entenderá a exatidão desse post. Se você tem uma biografia um pouco parecida com a minha e considera a possibilidade de seguir uma carreira estudando Filosofia, não se desespere. Aqui vão alguns avisos: Cedo ou tarde descobrirá que um doutorando em Filosofia acorda sempre tarde, dorme muito tarde, chega sempre atrasado, tem olheiras, bebe muito, é um pouco triste, porém mais feliz que a maioria.