quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

Planeta dos Olavos -- parte I

Débora acordou naquela quarta-feira surpresa por seu marido, Sérgio, não estar na cama. Não é que ela tivesse perdido o horário ou algo assim, afinal era a hora que ela sempre acordava nos dias de semana, mas justamente aquela manhã -- a manhã em que tudo começou -- foi uma das raras manhãs em que seu marido acordava primeiro, fazia o café e preparava o filho para a escola. 

-- Caiu da cama, é, Sérgio? -- perguntou com ironia sentando na mesa para o café. 

-- Haha, não foi isso. Tive um sonho estranho e acabei perdendo o sono. 

-- Hum, que tipo de sonho? 

-- Ah, nem lembro direito. Dá uma provada nesse suco de laranja que eu fiz, tá muito bom. 

-- Hoje acordei com vontade de refrigerante, Sérgio. Ainda tem aquela Pepsi na geladeira? 

Ao terminar de falar, Débora sentiu o suco de laranja de Sérgio escorrendo pelos seus cabelos, escorrendo na sua cara, lambuzando todo o seu rosto. 

--Sérgio, que merda é essa? Você virou suco de laranja em mim? 

-- Puta que pariu, Débora? Pepsi? Você sabia que a Pepsi utiliza células de fetos abortados para adocicar seus refrigerantes? Ora, porra, virou abortista agora, sua chupadora de pica da Dilma? Eu deveria pegar esse suco de laranja e enfiar no meio desse teu cu. 

Não foi a primeira vez que Débora discutia com seu marido e terminava com um suco de fruta na cara. Na verdade, foi a segunda: os dois haviam se conhecido quando Débora ainda trabalhava como garçonete em um restaurante para pagar a faculdade, e foi nesse cenário que ela teve pela primeira e única vez suco de fruta jogado na cara pelo seu marido. O novo eram todos aqueles palavrões, pois Sérgio, até então, era um cara bastante educado e cordial. "Essa cara endoidou? Bateu a cabeça na cama e ficou retardado? Só pode. E esse papo de abortista?" -- pensou Débora enquanto subia a escada para se arrumar para o trabalho. Depois de voltar, ela viu que Sérgio estava usando óculos daqueles tipo de vôzinho, o que nunca tinha acontecido até aquele dia. Decidiu cutucar o marido e perguntar se ele não achava que alguma coisa estava diferente. Sem jeito, Sérgio não soube explicar a razão dos óculos e apenas tentou convencer a esposa de que isso era normal. 

-- Ué, eu sempre reclamei de problemas na visão. Você que não presta atenção no que eu digo. 

"Acordou retardado, só pode", pensou ela, "na certa teve um sonho tarado com alguma das estagiárias e tá com vergonha de me encarar, só pode estar escondendo algo. Ah, mas eu vou descobrir, ah se vou".

No carro, o trajeto dos três (Sérgio, Débora e o filho Felipe) era sempre o mesmo: Felipe era deixado na porta do colégio, Débora ficava na agência de publicidade na qual trabalhava e Sérgio seguia para o escritório. Entretanto, naquela confusa manhã, um menino de rua fazia malabarismo com bolinhas e atrapalhava a movimentação do trânsito em que estava o carro da família. Os demais motoristas presos na rua parada já buzinavam quando Sérgio, bastante nervoso, botou a cabeça para fora da janela e começou a xingar. 

-- Puta que me pariu, só que me faltava um zé buceta desses estragar o meu dia. Esquerdista do caralho, libera logo essa rua. Tá com pena, Débora? Adota pra ti e leva pra casa, ora porra. 

O casal sempre evitou usar palavrões na frente do filho pequeno e a cena deixou Débora bastante assustada. Agora ela estava de fato preocupada com o comportamento do seu marido.  Foi quando Sérgio, sem parar de dirigir, tirou um cigarro do bolso, acendeu e começou a fumar. Débora não entendia mais nada, parecia que seu marido tinha acordado outra pessoa. 

-- Desde quanto tu fuma, Sérgio? 

-- Deu vontade e comecei, não posso? Ou vai dizer que tu acredita nessas informações aí que dizem que o cigarro faz um tremendo mal à saúde? Isso aí é papinho de comunistinha de merda que tem o monopólio dos meios de comunicação em massa e os utiliza para criar as condições políticas para se perpetuar no poder e impedir um espaço de ação da oposição de direita. 

-- Sei, Sérgio, sei bem o tipo de oposição de direita que tu é. 

-- Anda logo seu cagão de merda, libera logo essa rua, petista de bosta -- Sérgio voltou a gritar com o malabarista de rua, enquanto apertava a buzina repetidamente. 

Débora resolveu puxar o marido pelo braço, para olhar em seus olhos e pedir que ele se controlasse, pois o menino Felipe estava vendo todo o escândalo do pai. Pouca não foi a sua surpresa ao ver que Sérgio havia ficado com o cabelo todo grisalho de uma hora para a outra. 

-- Pai, por que seu cabelo ficou igual ao do vovô? 

-- Sérgio, você não está bem. Vira a esquerda agora e vamos direto para o hospital. 

-- Para, Débora, nunca me senti melhor. Na verdade até gostei da nova cor dos meus cabelos, passa mais credibilidade e combina com meus óculos. 

-- Você tá bem mesmo, Sérgio? 

-- Tô ótimo, amor, ótimo. Débora, você sabia que o Obama na verdade é um agente comunista muçulmano infiltrado para destruir a democracia dos Estado Unidos e o todo da cultura ocidental? 

-- Só dirige, Sérgio, só dirige. 

Sérgio voltou a gritar palavrões para o menino malabarista. A expressão de Felipe era de visível pavor, e Débora não podia acreditar no que via: seu marido, com quem ela era casada há quase dez anos, estava se transformando, diante dos seus olhos, em um Olavo de Carvalho. 

-- Sérgio, por favor, olhe seu rosto, você está diferente. Vamos para o hospital, estou pedindo. 

Sérgio acabou concordando. 

xxx

No hospital, Débora explicava para a recepcionista, que anotava tudo em um computadorzinho velho, a súbita mudança de comportamento e de aparência do marido. Depois o casal foi finalmente chamado para a salinha em que o médico de plantão atende seus pacientes.

-- Ai doutor, socorro... -- disse Débora logo que pôs os pés na sala. 

-- Ora porra, o senhor não é cubano, né, seu estojo de pica? Eu não apoio trabalho escravo, que ajuda a financiar a ditadura sanguinária dos irmãos Castros, mesmo nesse circo que é o Brasil -- disse Sérgio logo depois.

Ao ouvir a negativa do médico, Sérgio começou a gargalhar de uma forma histérica. Débora, morrendo de vergonha, tinha vontade de se esconder embaixo da caminha em que deitam os pacientes. O doutor, que ao ler a ficha médica do paciente tinha ficado descrente, começou a ficar preocupado com a situação de Sérgio. 

-- Ele está assim desde que acordou, doutor. Eu não sei mais o que fazer. Ela tá virando, meu deus do céu, um Olavo de Carvalho: fala palavrões, diz que tem um golpe comunista acontecendo no Brasil, fala coisas terríveis da USP, diz que ninguém pode debater com ele porque ninguém leu tudo o que ele leu. Eu tenho certeza que ele está virando um Olavo de Carvalho, certeza. 

-- Calma, moça, é cedo para afirmar qualquer coisas e eu nunca ouvi falar de gente virando Olavo de Carvalho da noite para o dia dessa forma. Não creio que haja no mundo uma doença que faça isso com as pessoas. Tem certeza que ele não faz isso por conta própria? 

-- Impossível, doutor, quem em sã consciência agiria assim, feito um completo idiota? 

Sérgio havia se deitado na cama e roncava alto. Débora não acreditou que seu marido havia caído no sono assim tão rapidamente em um hospital e deu um grito, chacoalhando-lhe pelos ombros. Sérgio saltou da cama com um pulo e começou a gritar: 

-- Puta que me pariu, já começou o golpe, começou? Maldita estratégia gransciana para tomar conta da cultura do país, bando de filhos de uma cadela!

-- Ele está pior do que eu imaginei -- comentou o médico, enquanto pegava alguma coisa em sua maleta -- Desculpe, senhora, mas terei que sedá-lo e depois darei alguns telefonemas. Provavelmente passará a noite aqui para observação. 

Sérgio foi colocado sedado em uma cama, enquanto Débora tentava descansar no sofá apertado de quartinho de hospital. Após algumas horas de silêncio, Sérgio se levantou para usar o banheiro. Débora se ajeitou no sofá e ficou esperando o marido voltar. Quando o marido saiu do banheiro estava irreconhecível: seu rosto estava completamente mudado, suas roupas estavam transformadas e sua voz havia mudado drasticamente. Sérgio tinha se transformado completamente em um Olavo de Carvalho. 

-- Meu deus do céu, Sérgio...

-- Sérgio, não. Meu nome é Olavo. Olavão, o terror dos comunas hehe. Adeus. 

Essas foram as últimas palavras de Sérgio que depois saltou pela janela do quarto, quebrando o vidro e xingando sua esposa e dizendo que ela não havia lido toda a sua obra filosófica. Atônica, Débora correu pelos corredores do hospital atrás do médico responsável, mas quando entrou na sua salinha sem bater na porta, viu que no lugar do médico estava um outro Olavo de Carvalho. Débora fecha a porta, completamente desesperada, e, ao se virar, choca-se com a enfermeira, que estava segurando uma folha de papel cheia de anotações e que jurava ter refutado a lei da gravitação universal de Newton.

"Deus do céu, é o começo do fim" -- pensou Débora antes de sair correndo do hospital que já começava a ficar cheio de Olavos de Carvalho. 






segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

Fenomenologia da Nega-maluca

Enquanto coisinhas vivas dotadas de afetos e racionalidade, nós humanos somos abençoados com o desejo da criar. Das diversas criações humanas, podemos dizer que umas expressam o nosso fracasso e, outras, o nosso sucesso. O fracasso e o sucesso observáveis nas coisas que criamos no mundo dizem muito sobre nosso modo de ser mais mongolóide e sobre o que temos de melhor enquanto humanos, na medida em que escancaram tanto as nossas mocoronguices quanto o que temos de mais bonito. Esse infindável jogo de erros e acertos resulta em coisas bonitas, coisas feias, coisas profundas, coisas toscas, coisas ruins e, às vezes, coisas gostosas. 

Das criações-fracassos podemos citar como exemplos as filas para banheiro, as guerras, a epistemologia social, os bigodes fakes, o processo de locar um apartamento em Porto Alegre e os ventiladores de teto. Das criações-sucessos, podemos mencionar a cidade de Ijuí, a novela Kubancan, o volante camisa 5 que sabe sair jogando sem descuidar da marcação, as cartas de amor, o conceito de "ser" e, por fim, o bolo  de chocolate Nega-maluca. 

É importante destacarmos que o sucesso ou fracasso de uma criação humana não dependem de sua popularidade, mas sim do grau de disposição para o avanço da experiência humana que ela pode propiciar. Por isso, um fracasso pode resultar num sucesso e um sucesso pode se mostrar, com o tempo, um fracasso. Dessa forma, algumas criações são fracasso-fracasso, enquanto outras são fracasso-sucesso, e o contrário também vale. A novela Kubanacan, por exemplo, é um sucesso-sucesso porque além de fascinante e cheia de pessoas bonitas e talentosas, ela nos instigou muitas reflexões em busca de nós mesmos e do que somos capazes de fazer depois dessa suposta tomada de consciência. Kubanacan nos colocou as questões fundamentais: Quem realmente somos? O que fazemos com isto que somos? Estamos vivendo a melhor vida que podemos viver? Estamos tornando o mundo um lugar melhor ou pior ou tanto faz? 

Todos esses acontecimentos não seriam possíveis sem a frágil presença da figura humana. Tudo o que não surge espontaneamente em florestas, galáxias, mares e ares depende forçosamente da interferência do ser humano, essa espécie dúbia, esse animal não-catalogado ancorado entre o mistério fantasioso do que ainda não se sabe e a superfície burocrática das coisas nomeadas. O homem é no mundo, mas ele não se contenta em apenas estar no mundo, ele quer fazer o mundo -- e o foda é que ele faz. Às vezes isso é legal, divertido e até emocionante, outras vezes é só sem-noção, vergonhoso e meio deprimente. 

Pelo menos nessa porrinha azul que nós chamamos de "Planeta Terra" é a humanidade que investiga, pesquisa e cria. Fazer o mundo: grande poder. Olhamos, compreendemos e superamos nosso mundo-circundante. Foi a humanidade que observou as montanhas mais bonitas espalhadas pelo mundo e resolveu superá-las de um jeito muito mais divertido, dando sabor e doçura à criação: criou-se assim o que viria a ser o bolo, outro exemplo de sucesso-sucesso. 

Assim como vários outros exemplares da espécie humana detentores da coceira do conhecimento já se debruçaram sobre a questão de o que faz uma coisa X ser uma coisa X e não uma coisa Y, é possível elaborar uma investigação fenomenológica do melhor tipo de bolo que existe: a Nega-maluca. Por que existe a Nega-maluca? De onde ela veio? Para onde ela vai? Quem ela é? Quem a criou e o que pensou ao criá-la? Será que foi tudo um acidente? Como explicar seu sabor? Quais e como são suas moléculas? Como se agrupam e como se dissolvem? Por que fazem assim e não de outro jeito? Como se deu a trajetória da primeira Nega-maluca até a atual proliferação de docerias, padarias e tortarias? 

Meu empenho mais recente, enquanto Dasein explorador daquilo que emerge da fenda da existência sobre a qual flutuamos com angústia e inquietação, tem sido a investigação sobre os modos de ser da Nega-maluca. Em minhas pesquisas de campo, tenho encontrado tipos diversos e genuínos. É claro que não são todos que se enveredam pelo caminho do bolo de chocolate. Tipos diferentes de bolos não faltam: bolo de morango, bolo de cenoura, cupcake, bolo de banana, bolo de milho, bolo gelado de abacaxi. Justifico minha preferência pelo bolo de chocolate, o tipo mais artificial que existe, pelo fato de que os bolos de fruta ainda se manterem entre aquilo que explode no mundo como acontecimento não-humano (as frutas) e o que a nossa criatividade humana é capaz de forjar (o bolo). Os bolos de frutas ainda são fortemente um retrato de nosso modo de ser preso ao mundo, em que nos relacionamos apenas com o que nos é dado de forma imediata, faltando-lhes a transcendência metafísica do bolo de chocolate. Por outro lado, a Nega-maluca é a Torre Eiffel das experiências bolísticas (e se eu quisesse o sabor de uma fruta eu iria lá e comia a própria fruta). É dessa forma que a Nega-maluca nos coloca em um jogo fenomenológico de longe-perto, velar-desvelar. Podemos colocar da seguinte forma: quem não gosta de bolo não tem mundo, quem gosta de bolo de banana é pobre de mundo, quem gosta de Nega-maluca é formador de mundo. 

Temos ainda que destacar o "estado de ânimo" vinculado à experiência da Nega-maluca.  Não há e nem é possível que haja um pessimista capaz de manter-se enquanto tal ao consumir uma autêntica Nega-maluca. Comer esse bolo de chocolate paralisa nosso cérebro e descansa nosso corpo da habitual ênfase no fracasso da experiência humana em todos os tempos e lugares -- o que abarca desde o esquecimento do ser nos dispositivos tecnológicos da civilização moderna até mesmo as experiências traumáticas de relacionamento, derrotas do time de futebol e a incapacidade imponderável de comunicação que nos isola em solidões incontornáveis. Tendo à mão uma Nega-maluca, ninguém consegue ser absolutamente fatalista. Simplesmente paramos de questionar pela razão do que há de errado no mundo e pela origem da culpa  na eterna expulsão de nosso Paraíso natal que é a vida humana. 

Por isso, é indispensável que, enquanto Dasein, avancemos no fortalecimento da Nega-maluca. Precisamos pensar na criação de um mundo feito de Nega-maluca como um rumo belo, mas sem linha de chegada, porque é sem limite. Avancemos, humanos, avancemos.