quinta-feira, 17 de outubro de 2013

O espetacular debate entre o filósofo Tim e uma pedra

O filósofo Tim está longe de ser um grande pensador. Na realidade, ele é um intelectual bastante medíocre e burocrático, só que o filósofo Tim foi abençoado com o dom de ser bem interpretado pelas pessoas. Por exemplo, numa de suas aulas, mês passado, um aluno esforçado apresentou um comovente trabalho sobre o conceito de hospitalidade em Derrida. O filósofo Tim chorou durante toda a apresentação. Muitas pessoas - incluindo o rapaz que apresentou o trabalho - acharam o filósofo Tim um cara muito legal e sensível, um pouco exagerado, mas ainda assim muito legal por se ter se deixado emocionar. Porém, o que realmente aconteceu foi que Tim estava achando tudo aquilo um saco e, quando pensou na sua produção intelectual dos últimos quinze anos, não aguentou e chorou. O filósofo Tim estava muito abalado principalmente depois que saiu a programação da semana acadêmica de sua universidade e ele se viu escalado para compor uma mesa de debates junto com uma pedra. 

Sim, uma pedra. Toda aquela preocupação com a alteridade e com a hospitalidade infinita, então por que não dialogar com uma pedra? - foi isso que os organizadores do evento argumentaram. Tim não sabia se era sério ou se estava sendo alvo de uma chacota de estudantes de pós-graduação. De qualquer forma - pensava o filósofo para se consolar - existem correntes de pensamentos místicas que dizem que as pedras sentem e pensam. Quem somos nós para limitar, não é mesmo? A alteridade deve ser aceita em toda a sua plenitude. Derrida mesmo disse que na aceitação da alteridade sempre há um pouco de loucura. Talvez muitas pedras sejam mais inteligentes que alguns seres humanos. Nós não vemos pedras matando, roubando, poluindo ou tentando impor sua fria lógica analítica - que na verdade imita o funcionamento do mercado liberal norte-americano - às outras formas de discursos. Não, nunca ninguém viu uma pedra fazendo isso. Isso explica por que as pedras nunca tiveram interesse em dialogar conosco. Em sua sabedoria superior, as pedras não entendem as nossas motivações mesquinhas e então preferem o silêncio. Ou talvez elas não conversem com a gente porque nunca leram Kant. Alguns sociólogos dizem que as pedras são tediosas e por isso não têm interesse de estudá-las. Mas, na realidade, esses sociólogos são apenas uns ressentidos. 

Tudo isso o filósofo Tim repetia para si mesmo para se convencer. Ele inclusive foi pesquisar sobre a vida e a história das pedras. Então ele se deparou com uma série de artigos publicados num grande livro chamado Fenomenologia das Pedras. Segundo alguns estudiosos que publicaram neste livro, as pedras são, sim, capazes de se mover, mas, no entanto, não o fazem. As pedras preferem ficar paradas porque não possuem nada de melhor para fazer em outro lugar e seria apenas um desperdício inútil de energia ficar indo de um canto para outro. Para o filósofo Tim isso pareceu fazer muito sentido. Ele até arriscou a hipótese de que esse modo de (não) mover das pedras é a chave para entender o seu pensamento tão superior ao nosso. 

Outra coisa interessante Tim encontrou em um livro de história que estava na estante de obrar raras da sua universidade. Lá ele leu que na Idade Média os boatos de que as pedras pensavam se espalhou fortemente e preocupou muito algumas pessoas religiosas muito importantes, inclusive o Papa. Isso nunca foi muito divulgado, mas, durante o período de caça às bruxas, houve uma atividade muito parecida de caça às pedras. Isso não durou muito porque os sacerdotes logo viram que perseguir pedras não era tão desafiador quanto perseguir bruxas, e jogá-las na fogueira também se mostrou muito decepcionante. 

De qualquer forma, era a tarefa de nosso querido filósofo debater com uma pedra na semana acadêmica. No dia do evento, uma pequena pedra, do tamanho da palma de uma mão, foi colocada sobre a mesa, em frente ao microfone. Tim sentou-se ao seu lado e começou com o debate: 

- A filosofia, em grande parte, sempre foi crítica da razão. Então eu proponho que comecemos por aqui. Tudo bem para você? 

- ...

- Bem, como dizem, quem cala consente hehe. Eu costumo colocar, quando se trata da ideia de razão, minha crítica ao que chamo de razão ardilosa. Minha crítica se dirige ao núcleo da ideia de razão, a partir da racionalidade calibrada pelo Outro da razão. Você está de acordo? 

- ...

- Seguindo. Trata-se do modelo de razão hegemônico na acadêmica, principalmente onde se tem maior influência do pensamento obtuso americano. Ela é surda ao grito silencioso do Outro e apenas re-projeta no mundo, só que de modo altamente formalizado, os pré-conceitos que dele recebe. Aqui eu toco no nervo da questão. O colega tem algo para contribuir? 

- ...

Nesse momento Tim afasta o microfone, se aproxima da pedra e cochicha para ela: 

- Olha, vai ser muito constrangedor se você não falar nada.

- ...

- Você não entende. Preciso de sua ajuda. Minha carreira acadêmica é uma piada. Escrevo sobre as mesmas coisas há 15 anos e até hoje não publiquei um livro relevante. Colabora aí, dona pedra.

- ...

- Tudo bem, eu até te entendo. Quem vai querer dialogar com um filósofo como eu? Sou um fracasso intelectual mesmo. 

- ...

- Curiosamente, você não é o primeiro corpo sem vida com o qual eu debato. Esses dias mesmo eu debati com o professor Agemir. 

- ... 

- Aposto que você está pensando que foi um debate muito interessante, mas não foi.  Hegelianos são um tipo estranho. Com muito tempo de sobra e nada para fazer. Tipo você. É um pouco triste, na verdade. 

- ...

- Nossa, eu estou passando muita vergonha aqui. Não sei por que concordei com isto. Onde já se viu, pedras pensarem? Por que eu me deixei levar por essa ideia? Todos do departamento vão rir de mim. Queria sumir, afundar na água igual uma pedra e desaparecer da vista de todos. 

- ...

- Falando nisso, por que vocês dão aqueles pulinhos quando são arremessadas na água? 

- Que pulinhos? Aquilo é física básica, seu imbecil. 

- Oi? 

-...

- Bem - voltando a falar no microfone - eu estava dizendo como o choque com a Alteridade deve nos levar à uma nova noção de razão, uma razão da ética...



domingo, 13 de outubro de 2013

Cássia I

Enquanto o Fantástico passa sem volume na televisão, Cássia busca no quarto um pouco de silêncio. Carros indo e vindo na rua e o tic tac enquanto ela digita qualquer coisa no skype para os meninos que batem punheta pensando nela. Raros momentos de tamanha tranquilidade. Ela gosta quando já é fim do dia e ela pode ficar só de blusa e calcinha, deitada na cama, não fazendo nada assim. Gosta de ver só a luz do abajur iluminando de forma delicada e sútil o quarto bagunçado. Gosta do toque do lençol nas suas pernas e do cheirinho bom do spray de casa cheirosa que ela joga no ar. E gosta dos meninos no skype dizendo que ela é gostosa. Nessas horas Cássia é quase feliz. 

Ela gostaria que seus pensamentos se aquietassem, para que ela realmente conseguisse descansar. Gostaria de ter um namorado, de levar uma vida certa e direita, ser mulher de um homem só, ser de família, como dizem. Gostaria que seu coração não ficasse acelerando e desacelerando trazendo essa pequena afobação gostosa cada vez que um desconhecido mostra pra ela seu pau duro na cam do skype. Que seu estômago não se revirasse de ansiedade cada vez que ele conhece um cara novo. Gostaria de não ficar imaginando como é na cama um colega ao qual acabou de ser apresentada. Gostaria que suas olheiras, resultado de noites seguidas sem dormir, não estivessem tão grandes num rosto tão branco e bonito.  Mas Cássia sabe que não pode mudar. Ela sabe que isso a mataria."Eu sou o que sou", ela diz pra si mesma. 

Ela gostaria que o sexo sem compromisso fosse capaz de curar essa qualquer coisa, esse incômodo ou sentimento amargo, essa coisa que não se sabe o nome ou a procedência, isso que desde que ela se viu moça quer sair mas não encontra a forma, isso que lhe tira a paz nos momentos de tranquilidade. Ela gostaria que saísse. Que saísse de algum jeito. Só que nunca saí. Deve estar perdido ou grudado em algum pedaço do seu corpo. Nos seus peitos ou nas pernas. Ou na suas células sanguíneas ou na sua respiração, ou no piscar dos olhos cansados. Ou no rímel melecado que sai com algodão junto com o removedor de maquiagem. Na pelinha do canto da unha do dedão arrancada ao dente. Mas continua lá. Nela. No corpo dela. No corpo que ela é. 

Enquanto o silêncio do quarto briga com a gritaria das ruas, Cássia sobrevive mais um dia. Enfrentando o que consegue e fugindo do que pode, encontrando no barulho do centro da cidade o silêncio inquieto que precisa para a sua quase sobrevivência. Somos todos Cássia.  
Fui fazer café (pensei em você), assim como quando abri o chuveiro à tarde (pensei em você) e quando estive caminhando ontem pelas ruas e vi os bares lotados (pensei em você). Eu prometi para mim mesmo não contribuir ainda mais para o acúmulo de lixo na internet com mais tristeza, mas você está na minha cabeça e não quer sair. De vez em quando as imagens mentais sobre você formam algumas palavras; nuvens de frases que vão se acumulando pelos cantos do apartamento sujo. Disso eu não consigo escapar. Eu queria nunca mais escrever. Não existe mais nada que deva ser dito por ninguém. Isso tá cada dia mais óbvio e isso eu vou repetir até me convencer. Só que não sei que destino dar às palavras mais simples, assim como não sei o que fazer com o café que esfria na mesa além de bebê-lo. No apartamento que eu moro não cabe mais nada, mas cabe minha cabeça teimosa. Cheia cheia cheia cheia de palavras. Abro um livro ou a geladeira ou um pacote de Cebolitos. Nada muda nada. Só a sujeira segue se acumulando pelos cantos do apartamento. Penso em você e você me vem à mente como um artigo que há semanas tento acabar e não consigo. Um artigo sobre o conceito de mundo em Heidegger. Sobre um mundo que é o seu e é o meu também. Não consigo acabar o artigo porque ele é ruim e ele é ruim porque é um artigo: porque diz alguma coisa que não precisa ser dito. Que diferença ele pode fazer? Prometo apenas escrever para contar piadas. Prometo ter equilíbrio mental suficiente para ser um idiota. Os grandes textos filosóficos do século XX falaram do fracasso da experiência humana. Os grandes textos filosóficos do século XXI falarão da aceitação desse fracasso. De minha parte, sei que não colocarei mais nada de ruim no mundo. Só vou escrever de coisa boa. Como quem fala por necessidade, como quem conversa com um cão. Não faz sentido defender, reclamar ou condenar. Seríamos mais coerentes se só usássemos a linguagem para falar de coisas sem importância. Nos casos em que queremos brigar, discutir, opinar, analisar a arquitetura das galáxias ou dissecar as estruturas do ser primordial ou criticar o complexo cenário político que inventamos para enfeitar a nossa cabeça - nestes casos deveríamos ter uma coisa em mente: ninguém realmente se importa. O que importa é ocasionalmente saciarmos nosso desejo, a fome, o frio, a tristeza. Se usarmos a linguagem pra isso, ela então faz sentido. No tempo que sobrar poderíamos dar um descanso para nosso logos. Sair tomar café, entrar num cinema e depois esperar na marquise de uma loja até que a chuva passe. Depois, em casa, bastaria ter calma com a noite. Sem se preocupar com o medo infantil que é ter medo da noite, sem se preocupar com tudo o que já foi dito sobre o medo da noite, sem se preocupar com o quanto já se falou sobre o medo da noite, sem se preocupar no quanto o medo da noite perdeu a graça depois que tudo sobre ele foi dito. Mas o medo da noite persiste tanto quanto a noite, tanto quanto as palavras sobre o medo da noite. Como se nada tivesse mudado desde o tempo em que o mundo era um lugar onde as coisas só dependiam do sol para serem vistas. E não das palavras. Então não há como nos livrarmos desse lixo. Quando toda essa bosta explodir -- a terra o céu o mar -- as palavras ficarão e irão ricochetear na atmosfera como raios ultravioleta. Não faz sentido nos preocuparmos nem mais nem mesmo. Vamos sentar na sombra, aproveitar enquanto ainda há brisa, adormecer em silêncio e gritemos em alto-falantes apenas quando for o caso de gritar.