O filósofo Tim está longe de ser um grande pensador. Na realidade, ele é um intelectual bastante medíocre e burocrático, só que o filósofo Tim foi abençoado com o dom de ser bem interpretado pelas pessoas. Por exemplo, numa de suas aulas, mês passado, um aluno esforçado apresentou um comovente trabalho sobre o conceito de hospitalidade em Derrida. O filósofo Tim chorou durante toda a apresentação. Muitas pessoas - incluindo o rapaz que apresentou o trabalho - acharam o filósofo Tim um cara muito legal e sensível, um pouco exagerado, mas ainda assim muito legal por se ter se deixado emocionar. Porém, o que realmente aconteceu foi que Tim estava achando tudo aquilo um saco e, quando pensou na sua produção intelectual dos últimos quinze anos, não aguentou e chorou. O filósofo Tim estava muito abalado principalmente depois que saiu a programação da semana acadêmica de sua universidade e ele se viu escalado para compor uma mesa de debates junto com uma pedra.
Sim, uma pedra. Toda aquela preocupação com a alteridade e com a hospitalidade infinita, então por que não dialogar com uma pedra? - foi isso que os organizadores do evento argumentaram. Tim não sabia se era sério ou se estava sendo alvo de uma chacota de estudantes de pós-graduação. De qualquer forma - pensava o filósofo para se consolar - existem correntes de pensamentos místicas que dizem que as pedras sentem e pensam. Quem somos nós para limitar, não é mesmo? A alteridade deve ser aceita em toda a sua plenitude. Derrida mesmo disse que na aceitação da alteridade sempre há um pouco de loucura. Talvez muitas pedras sejam mais inteligentes que alguns seres humanos. Nós não vemos pedras matando, roubando, poluindo ou tentando impor sua fria lógica analítica - que na verdade imita o funcionamento do mercado liberal norte-americano - às outras formas de discursos. Não, nunca ninguém viu uma pedra fazendo isso. Isso explica por que as pedras nunca tiveram interesse em dialogar conosco. Em sua sabedoria superior, as pedras não entendem as nossas motivações mesquinhas e então preferem o silêncio. Ou talvez elas não conversem com a gente porque nunca leram Kant. Alguns sociólogos dizem que as pedras são tediosas e por isso não têm interesse de estudá-las. Mas, na realidade, esses sociólogos são apenas uns ressentidos.
Tudo isso o filósofo Tim repetia para si mesmo para se convencer. Ele inclusive foi pesquisar sobre a vida e a história das pedras. Então ele se deparou com uma série de artigos publicados num grande livro chamado Fenomenologia das Pedras. Segundo alguns estudiosos que publicaram neste livro, as pedras são, sim, capazes de se mover, mas, no entanto, não o fazem. As pedras preferem ficar paradas porque não possuem nada de melhor para fazer em outro lugar e seria apenas um desperdício inútil de energia ficar indo de um canto para outro. Para o filósofo Tim isso pareceu fazer muito sentido. Ele até arriscou a hipótese de que esse modo de (não) mover das pedras é a chave para entender o seu pensamento tão superior ao nosso.
Outra coisa interessante Tim encontrou em um livro de história que estava na estante de obrar raras da sua universidade. Lá ele leu que na Idade Média os boatos de que as pedras pensavam se espalhou fortemente e preocupou muito algumas pessoas religiosas muito importantes, inclusive o Papa. Isso nunca foi muito divulgado, mas, durante o período de caça às bruxas, houve uma atividade muito parecida de caça às pedras. Isso não durou muito porque os sacerdotes logo viram que perseguir pedras não era tão desafiador quanto perseguir bruxas, e jogá-las na fogueira também se mostrou muito decepcionante.
De qualquer forma, era a tarefa de nosso querido filósofo debater com uma pedra na semana acadêmica. No dia do evento, uma pequena pedra, do tamanho da palma de uma mão, foi colocada sobre a mesa, em frente ao microfone. Tim sentou-se ao seu lado e começou com o debate:
- A filosofia, em grande parte, sempre foi crítica da razão. Então eu proponho que comecemos por aqui. Tudo bem para você?
- ...
- Bem, como dizem, quem cala consente hehe. Eu costumo colocar, quando se trata da ideia de razão, minha crítica ao que chamo de razão ardilosa. Minha crítica se dirige ao núcleo da ideia de razão, a partir da racionalidade calibrada pelo Outro da razão. Você está de acordo?
- ...
- Seguindo. Trata-se do modelo de razão hegemônico na acadêmica, principalmente onde se tem maior influência do pensamento obtuso americano. Ela é surda ao grito silencioso do Outro e apenas re-projeta no mundo, só que de modo altamente formalizado, os pré-conceitos que dele recebe. Aqui eu toco no nervo da questão. O colega tem algo para contribuir?
- ...
Nesse momento Tim afasta o microfone, se aproxima da pedra e cochicha para ela:
- Olha, vai ser muito constrangedor se você não falar nada.
- ...
- Você não entende. Preciso de sua ajuda. Minha carreira acadêmica é uma piada. Escrevo sobre as mesmas coisas há 15 anos e até hoje não publiquei um livro relevante. Colabora aí, dona pedra.
- ...
- Tudo bem, eu até te entendo. Quem vai querer dialogar com um filósofo como eu? Sou um fracasso intelectual mesmo.
- ...
- Curiosamente, você não é o primeiro corpo sem vida com o qual eu debato. Esses dias mesmo eu debati com o professor Agemir.
- ...
- Aposto que você está pensando que foi um debate muito interessante, mas não foi. Hegelianos são um tipo estranho. Com muito tempo de sobra e nada para fazer. Tipo você. É um pouco triste, na verdade.
- ...
- Nossa, eu estou passando muita vergonha aqui. Não sei por que concordei com isto. Onde já se viu, pedras pensarem? Por que eu me deixei levar por essa ideia? Todos do departamento vão rir de mim. Queria sumir, afundar na água igual uma pedra e desaparecer da vista de todos.
- ...
- Falando nisso, por que vocês dão aqueles pulinhos quando são arremessadas na água?
- Que pulinhos? Aquilo é física básica, seu imbecil.
- Oi?
-...
- Bem - voltando a falar no microfone - eu estava dizendo como o choque com a Alteridade deve nos levar à uma nova noção de razão, uma razão da ética...