Eu poderia escrever um post sobre Heidegger. Eu poderia explicar como Heidegger ao ligar a questão do ser com a compreensão que Dasein tem de si no mundo fez algo tão inovador na história do pensamento ocidental que é simplesmente impossível pensar as grandes questões metafísicas da mesma forma antes e depois de Ser e Tempo. Eu poderia fazer isto. E nem teria muitas dificuldades. Mas para isto teria que supor no leitor o mínimo de domínio do método fenomenológico. Então, melhor não.
Eu poderia escrever um post sobre a minha vida. Poderia escrever sobre meus planos e sobre tudo que faço para tornar minha vida melhor e mais agradável. Isto poderia servir de conselho para alguém. Ou para mim mesmo, que nunca faço o que me comprometo a fazer. É que eu ouço demais meus pensamentos, mas nunca consigo organizá-los. São como estrelas que brilham forte e que eu não consigo encaixar numa constelação. Seria um texto muito confuso. Melhor não.
Já sei! Eu poderia escrever um post sobre o amor. Esse sentimento tão bonito que é o amor. Sempre rende bons textos, o amor. Só que todo mundo já escreve sobre o amor. Todo mundo repete frases sobre o amor. É um assunto tão batido, o amor. Melhor não.
Eu poderia escrever um post sobre o último bom livro de filosofia que li. É um livro do Tugendhat, sobre autoconsciência e autodeterminação. É bom o livro. Ele quase chega lá. Quase chegar não é chegar. Melhor não.
Eu poderia escrever um post sobre mim. Eu falo pouco de mim no meu próprio blog. Poderia falar sobre meu jeito, minhas manias e gostos. Poderia falar do que tenho medo, do que me deixa triste e do que me alegra. Poderia falar sobre a dor de cabeça terrível que tive hoje. Poderia. Poderia mesmo. Mas quem se interessaria? Talvez quem fabrique a Neosaldina. Eles deveriam até me patrocinar. Deveriam me dar uma caixa daquelas com vinte comprimidos por mês. É que minha dor de cabeça não passa só com uma. Todo duas juntas, ou até mais. Melhor não.
Talvez se eu contasse uma história. Eu sou capaz de escrever uma história. Algo simples, dois ou três personagens no máximo. Algumas piadas internas e um final nonsense. Eu poderia escrever esse post. Pessoas inventadas num mundo inventado. O problema é que eu não consigo dar unidade às minhas histórias. Ficam acontecimentos soltos como em uma sopa de letrinhas. Como aquela sopa que Seu Osório faz questão de jogar no chão quando está muito fria e pastosa. Só gosta de sopa quentinha, o Seu Osório, e com legumes, que é pra dar sustância. Tá certo, como é esperto o Seu Osório. Eu o conheci numa visita que minha turma da escola fez ao asilo. Tudo era muito triste e feio. Ele me disse que morava no asilo há quase vinte anos. E não achava ruim. Até curtia ficar longe dos filhos e dos netos. Pessoas ruins, ele dizia. Os filhos o deixaram no asilo porque ele tinha ficado velho demais. Velho demais há quase vinte anos. É quase a minha idade. Se não morreu, ainda deve estar lá naquele asilo, jogando sua sopa fria fora, sozinho e velho demais, o Seu Osório. Melhor não.
Eu poderia simplesmente escrever um post sobre a felicidade. Afinal, ser feliz é o que importa, né? Todo mundo é obrigado a ser feliz, mesmo que de mentirinha. Todo mundo tem que agradecer a sei lá quem todos os dias por ter uma casa, um carro, um namorado, família, gente que ama, trabalho, dinheiro, saúde e por não faltar nada. Reclamar? Não, nunca. Reclamar não. A vida é sempre boa, boa demais para ser verdade. Basta viver e ser feliz. Mas... Mas e se o sol tão lindo e tão brilhante que aparece pra vocês não aparecer pra mim? E se eu não quiser ser feliz? E se eu for triste? Qual é o problema de ser triste e ficar a vida toda debaixo das cobertas curtindo essa fossa? E se a felicidade, no final das contas, for algo tão escondido e tão mascarado, presente nas coisas mais pequenas e insignificantes, que no fim se tona praticamente inexistente? Melhor não.
Eu poderia escrever um post sobre Porto Alegre. Sobre como está frio e cinza. A aventura que é morar numa grande cidade. De como a vida de alguém que nasce e cresce no interior se vê de cabeça para baixo morando aqui. Poderia escrever sobre como a cidade nos engole como se fossemos um hambúrguer do Pampa Burguer. Poderia falar sobre como tento catar as migalhinhas de mim que sobram e de como me esforço para segurá-las firme nas mãos para que o vento ou os pombos não levem embora. Ninguém vê quando a gente fica sozinho em casa. O pior é quando bate a tristeza em horas erradas, como no ônibus lotado ou no meio de uma aula. Aí a gente tem que esconder a tristeza feito criança malcriada. Mas se alguém apertar o braço, a gente chora feito quando se aperta uma esponja encharcada. Mas essa coisa do menino confuso que se perde no fluxo de pessoas na cidade grande já tá manjada demais também. Eu escolhi morar aqui e foda-se: é problema meu. Melhor não escrever sobre isto. Melhor não.
E se eu escrever um post político? Tá na moda. A política é sexy hoje em dia. A política é o chapéu da estação. Eu poderia esbravejar por linhas e linhas sobre um tema que eu conheço pouco e na verdade quase nada me interessa. O que me interessa que não prendem os condenados do Mensalão? Foda-se o Mensalão. Às vezes até me sinto um pouco culpado por não me interessar muito por esse tema. Dizem que a política interfere diretamente na vida de todo mundo. Até na minha? Que se dane. Melhor não.
Eu poderia então escrever um post sobre a vontade de escrever, mesmo quando a inspiração não vem. Mesmo quando todos os temas do mundo parecem chatos e monótonos e mesmo assim você sente uma vontade tão grande de colocar algo pra fora, como se fosse vomitar pelas mãos. Mas o quê? O que é isso que quer sair? O que é isso que faz cosquinha na cabeça da gente? O que quer ser escrito? O que pede pra gente um nome? O que é isso que me faz digitar tão depressa enquanto que na TV um pastor exorciza uma mulher aos gritos?
Estou sem tema. Sobre o que é esse post? O que é que você gostaria de ter lido? O que é?
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