não é um assunto confortável e sempre nos desagrada ficar sabendo de coisas assim. geralmente é o tipo de coisa que a gente evita, como aquela parte da realidade que vamos negando até se tornar quase invisível. uma parte do mundo que faz a gente fechar os olhos quando vem ao nosso encontro. não queremos ver porque é feio ou porque dá medo ou até porque dá nojo. e então desviamos o corpo e o cérebro, para não ter pensamentos tristes sobre isso.
no entanto, é impossível viver numa grande cidade sem ter esses encontros. estou pensando aqui no tempo em que morei na cb, bairro em que a miséria e a violência foram se juntando com a paisagem. a gente simplesmente se acostumou a passar por tantas pessoas dormindo pelas calçadas ou pedindo trocados. são encontros inescapáveis e ninguém está livre deles, a não ser que se isole na bolha de seu apartamento ou condomínio, e que sempre tenha empregados mudos e uniformizados, ficando bem distante da visão e do pensamento das coisas do mundo lá fora. quem tem que sair na rua, andar a pé e pegar busão, que vive além do limite do próprio portão, não pode escapar desse encontro com uma realidade que não se quer mas que se impõe. as pessoas da minha classe, essa gente indefinida, que não é rica nem pobre, e que recebe abstratamente o nome de classe média, vive cotidianamente desviando os olhos e o cérebro desses encontros.
um bairro como a cb é, inegavelmente, uma sobreposição de realidade diferentes e até divergentes, em grandes áreas de luz e sombras, em que tudo se vê ao mesmo tempo em que fingimos não ver nada. ali, no invisível, no escuro, escondemos aquilo que não gostamos, que nos dá medo, que nos dá culpa, aquilo com o que não concordamos, que compromete a história de nossa vidinha feliz -- esses que a gente joga no escuro, na sobra, mas que usamos sempre para falar de nossas angústias e dilemas de classe média.
escrever, como comecei falando, é quase sempre não fazer nada. só queria escrever mesmo sobre esses pensamentos tristes, comuns para um morador da cb, que cumprimenta cinicamente um miserável, que vai passar a noite lutando contra o sono deitado em alguma calçada gelada. esses pensamentos complicados, na maior parte das vezes a gente desvia imediatamente e só consegue carregar junto uma pequena parte, para não despertar a raiva, a culpa ou a angústia dentro de nossa vidinha inútil e burra, dentro de casa, do trabalho, do pensamento, a gente se esconde. ainda que lá fora a vida esteja cada vez mais cinza.
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