segunda-feira, 17 de dezembro de 2018

nunca consigo levar adiante boa parte de meus projetos. minha vida pode ser qualquer coisa, menos constante. viver para mim é quase tão difícil quanto escrever. é aqui onde me sinto menos exigente e mais solto. quando escrevo filosofia, nunca consigo essa irresponsabilidade. sempre escrevi, e já disse muitas vezes que não faz filosofia hoje quem não sabe escrever. meu trabalho em filosofia sempre foi absolutamente mediado por palavras, tanto que simplesmente não consigo realizar qualquer objetividade sem essa mediação. em cada projeto em que eu me envolvo, sinto essa necessidade de acabar narrando, interpretando, pontuando. quando algum texto me impacta ao ponto de me tirar as palavras, sinto um tipo de abandono. então me entedio, ou fico irritado. 

isso não quer dizer que escrever seja algo fácil. até agora tem exigido de mim muito esforço. é como se alguém me pedisse para fazer, sei lá, uma cadeira, objeto simples e de uso cotidiano. mas eu não sou carpinteiro. me encho de medos e inseguranças, pensando que vou construir um objeto que ninguém vai gostar ou em que ninguém vai querer sentar, ou, se sentar, vai acabar caindo. geralmente, o objeto que consigo fazer é pouco elaborado, simples, precisa ser usado com cuidado e quase sempre precisa de uns ajustes e consertos. não conseguiria produzir em série. na verdade, não seria nem economicamente viável. 

não existe um caminho para se escrever. se fosse assim, a gente encheria garrafas e vendia por ai. não é assim. escrever é mais como visitar um planeta desconhecido e, aos poucos, aprender a respirar nele. é sempre fazer uma cadeira sem ser carpinteiro. de novo a mesma dificuldade, de novo o mesmo embaraço. meu texto sempre vai ter um pouco deste desconserto, desse despreparo, dessa incompletude, dessa fragilidade.  ainda assim, algumas vezes a gente consegue fazer uma cadeira, uma mesa, um banquinho.

durante este último ano, trabalhei, com a ajuda do professor stein (a quem deixo registrado aqui o meu muito obrigado), em um livro que basicamente é reunião de muitas anotações soltas, notas de aulas, palestras, apresentações, ideias provisórias do tempo em que dei aula em erechim (por muito tempo, erechim será o meu a priori). o livro poderá ser baixado sem custos pelo site da editora, mas você também pode encomendar um exemplar impresso e presentear no amigo secreto aquela tua tia metafísica. exemplares autografados poderão ser encontrados no bar mais próximo. 

quarta-feira, 5 de dezembro de 2018

muitos amigos estão compartilhando e comentando aqui a notícia de que a extrema pobreza voltou a crescer assustadoramente no país, contabilizando, no ano passado, 15,2 milhões de pessoas. não sei por que pensei em escrever sobre esse assunto, ainda que escrever seja não fazer nada.

não é um assunto confortável e sempre nos desagrada ficar sabendo de coisas assim. geralmente é o tipo de coisa que a gente evita, como aquela parte da realidade que vamos negando até se tornar quase invisível. uma parte do mundo que faz a gente fechar os olhos quando vem ao nosso encontro. não queremos ver porque é feio ou porque dá medo ou até porque dá nojo. e então desviamos o corpo e o cérebro, para não ter pensamentos tristes sobre isso. 

no entanto, é impossível viver numa grande cidade sem ter esses encontros. estou pensando aqui no tempo em que morei na cb, bairro em que a miséria e a violência foram se juntando com a paisagem. a gente simplesmente se acostumou a passar por tantas pessoas dormindo pelas calçadas ou pedindo trocados. são encontros inescapáveis e ninguém está livre deles, a não ser que se isole na bolha de seu apartamento ou condomínio, e que sempre tenha empregados mudos e uniformizados, ficando bem distante da visão e do pensamento das coisas do mundo lá fora. quem tem que sair na rua, andar a pé e pegar busão, que vive além do limite do próprio portão, não pode escapar desse encontro com uma realidade que não se quer mas que se impõe. as pessoas da minha classe, essa gente indefinida, que não é rica nem pobre, e que recebe abstratamente o nome de classe média, vive cotidianamente desviando os olhos e o cérebro desses encontros. 

um bairro como a cb é, inegavelmente, uma sobreposição de realidade diferentes e até divergentes, em grandes áreas de luz e sombras, em que tudo se vê ao mesmo tempo em que fingimos não ver nada. ali, no invisível, no escuro, escondemos aquilo que não gostamos, que nos dá medo, que nos dá culpa, aquilo com o que não concordamos, que compromete a história de nossa vidinha feliz -- esses que a gente joga no escuro, na sobra, mas que usamos sempre para falar de nossas angústias e dilemas de classe média. 

escrever, como comecei falando, é quase sempre não fazer nada. só queria escrever mesmo sobre esses pensamentos tristes, comuns para um morador da cb, que cumprimenta cinicamente um miserável, que vai passar a noite lutando contra o sono deitado em alguma calçada gelada. esses pensamentos complicados, na maior parte das vezes a gente desvia imediatamente e só consegue carregar junto uma pequena parte, para não despertar a raiva, a culpa ou a angústia dentro de nossa vidinha inútil e burra,  dentro de casa, do trabalho, do pensamento, a gente se esconde. ainda que lá fora a vida esteja cada vez mais cinza.