sexta-feira, 14 de novembro de 2014

Analítica existencial da Gata Dasein II: o modo-de-ser da Dasein

O modo-de-ser da Gata Dasein é um pouco confuso, um pouco noturno. É o modo-de-ser parecido com as árvores, com as chuvas, com as latas vazias de cerveja. O modo-de-ser da Dasein é uma mistura de solidão com vodca. No fundo, todo o modo-de-ser é solitário e assim também é o da Gata Dasein. Na verdade, a Gata Dasein nunca vive o seu modo-de-ser. A Gata Dasein vive o modo-de-ser da cidade. O modo-de-ser da Dasein é o modo-de-ser das ruas, do movimento, das luzes, dos gritos e da merda. É um modo-de-ser bem complicado. Para entendermos o modo-de-ser da Dasein, primeiro temos que entender o modo-de-ser das janelas, se são tristes ou alegres, se por elas podemos ver a rua por onde passa um carro ou um homem e uma mulher. De todas as formas, é um modo-de-ser complexo. O modo-de-ser da Dasein é vagabundear deitada na janela e sentir a chuva em seu rosto, e ser a chuva, ser o vento noturno, ser o cheiro de cerveja, ser as onze da noite, ser uma árvore, ser uma mulher que passa, ser a fumaça do cigarro da mulher que passa, ser o cheiro das pessoas que vão até os bares. 

O modo-de-ser da Gata Dasein é bastante sério. Seu único sentimento de situação é a despreocupação. Seu sentimento de situação é um dia de chuva, uma chuva que molha as ruas, uma chuva que molha o teto dos carros. O modo-de-ser da Gata Dasein é nunca-ser-para-a-morte. É ver a cidade envolvida na merda e não saber que também se morre. O não-ser-para-a-morte da Gata Dasein é não saber que se morre envenenado com o cheiro da cidade. É não saber que os dias se apagam debaixo da chuva, debaixo das folhas das árvores, e que não há nada que a gente possa fazer. Esse modo-de-ser da Gata Dasein é passar os dias pensando que a tristeza não está aqui. A tristeza está nas árvores lá fora, nos prédios, nas pessoas que andam pelas ruas debaixo da noite, nos carros que pensam um depois do outro. O modo-de-ser da Gata Dasein é subir na janela e ficar durante toda a noite espiando para fora e dizendo: que se foda o mundo, a dona da noite sou eu, eu posso olhar por cima toda a merda da mundo. 

sábado, 8 de novembro de 2014

R R

Richard Rorty, o filósofo americano, era um peixe. Um peixe cínico, um peixinho alucinado perdido em um grande aquário cheio de água suja dos dias e das noites. Este aquário é a filosofia. Rorty representava todo o nojo e cinismo que se podia sentir pela filosofia acadêmica norte-americana. Rorty era um filósofo punk, o últimos dos filósofos anárquicos de uma geração totalmente dominada pela onda da filosofia analítica. Rorty, como filósofo, ia contra as boas maneiras na mesa e na cama da academia. O filósofo Rorty era partidário de jogar bola dentro de casa, irresponsável, e de cuspir no chão em frente aos poderosos. Uma de suas principais influências teóricas era Derrida, o filósofo indecente da França, que também zombou do jogo acadêmico norte-americano. Derrida e Rorty: duas moscas em meio ao cenário desumano da filosofia contemporânea. Ambos saíram do útero da anarquia. Ambos desgraçados. Heróis malditos de um cenário filosófico cada dia mais sem graça. 

Rorty representava a última possibilidade de fragmentação de uma geração de filósofos que muito cedo deixou de ser jovem e se tornou analítica. Essa também é a nossa geração, uma geração sem identidade que desde a graduação é educada para não ser obscura, para seguir a regra da clareza, da produção de proposições, da argumentação. Uma geração de estudantes que hoje tem vinte, trinta ou quarenta anos, que não se dedica mais a irresponsabilidade, que apoia a bandeira de seus pais e de seus professores, a bandeira da responsabilidade teórica, a bandeira da clareza contra a obscuridade, a bandeira da clean image, do não ao cigarro, do sim à cultura da mente e do corpo são, dos pensamentos claros e transparentes, dos pensamentos razoáveis e argumentativos, das boas razões e da boa conduta. 

Talvez sem sabê-lo Richard Rorty tinha um pouco de Walter Benjamin, um pouco de surrealismo, um pouco messianismo. Talvez sem sabê-lo ele também oferecia um pouco de ruptura ao mundo pequeno da filosofia institucionalizada. O que se deve ter claro era que para Richard Rorty, dentro desse mundinho da filosofia dominado pelos analíticos, era melhor atravessa-lo através de ofensas, através de um riso debochado, através de um pragmatismo irônico, através da literalização da filosofia, através de uma anti-epistemologia, através de uma seringa com heroína injetada nas veias da tradição filosófica, através de um discurso filosófico que funcionava como uma guitarra elétrica.

Necessitamos de mais filósofos como Richard Rorty. Filósofos que se pareçam com aquelas mulheres que correm peladas pelas ruas de Porto Alegre, filósofos que despejam venenos nas águas transparentes da filosofia analítica, filósofos que nos fazem escutar um pouco de rock no nosso saturado ar filosófico, filósofos que nos fazem ver mais aves no céu, filósofos nos fazem dar mais beijos nos parques. Necessitamos de filósofos irresponsáveis, que façam chover vodca do céu escuro da filosofia.

Não queremos mais discursos transparentes, não queremos mais argumentos e apontamento de falácias. Não mais. Queremos a chuva de vodca rortyana, uma chuva contaminada pela ironia, contaminada pela lua, contaminada pela irresponsabilidade. 

terça-feira, 4 de novembro de 2014

a eternidade não foi feita para nós

o tempo é tão pesado 
para você
quanto é para mim? 
a possibilidade dos cabelos 
brancos e das rugas e
das coisas que passam e passam até deixarem
de passar. eu
pelo menos me 
importo e me espanto

morrer deveria ser 
inaceitável 
só que a eternidade 
não foi feita para nós 
porque a vida acaba 
porque ficamos mais velhos 
porque temos tanta dor. a dor 
assusta, aquelas dores à noite, sua vó 
no hospital, o silêncio

o tempo passa mais rápido para 
nós 
os carros passando lá
 fora 
a gente queria que o tempo parasse de 
passar
mas a eternidade não foi feita para nós

nossa vida tem esse cheiro 
de passado 
não sei por que que
nossa vida tem esse cheiro de 
morte 
casas vazias ruas vazias cidades inteiras 
vazias,
a eternidade
não foi feita para nós

ela é a cópia despedaçada do tempo
de Borges
a eternidade é um telefone que não toca
é a música de uma festa que não acaba 
é o olhar  que olha as costas de quem vai embora
é o tempo que o suor leva para secar nas costas em
um dia de muito calor 
a eternidade é tudo o que não dura apenas um final de semana ou
uma vida inteira 

eternidade é tudo aquilo que não foi feito para nós


agora, 
você 
dormiu