Não é preciso ler muitos manuais de filosofia para saber que a história da filosofia mostra uma preocupação inflexível com o problema entre a aparência e a realidade. "Acho que vejo fogo", diz o filósofo de robe e pantufas sentado na poltrona ao pé da lareira, "mas não é possível que meus sentidos estejam me enganando e tudo não passe de uma ilusão?", "Acho que vejo pessoas passeando lá fora", murmura novamente, "mas não seria o gênio maligno mais uma vez colocando picuinhas na minha cabeça?", "Acho que vejo rinocerontes embaixo dessa mesa", diz um outro, "opa, era ilusão, será?", "Acho que vejo o Timm na minha banca de doutorado", e acrescenta esperançoso, "mas não seria possível que ele também seja uma ilusão?"
Já eu ando pensando que os filósofos tendem a limitar a dúvida epistemológica à existência de lareiras, pessoas que passeiam na rua, cadeiras, rinocerontes embaixo de uma mesa numa sala da faculdade de Cambridge e da ocasional e indesejada presença do Timm numa banca de doutorado. Mas levar essas questões a coisas que nos são mais importantes, como a nossa própria existência, por exemplo, é levantar a terrível possibilidade de que eu não seja mais do que um perfil fake em um blog, uma fantasia interior, sem nenhuma conexão com qualquer realidade objetiva, de um estudantezinho de filosofia que não tem coragem de assinar as coisas que escreve na internet. A dúvida é simples quando não se trata da nossa própria sobrevivência. Não me levem a mal, eu quero ser tão cético quanto eu posso me dar ao luxo de ser, mas não é fácil ser cético ao ponto de pensar que eu existo apenas para um estudantezinho que tem um blog fake e escreve coisas bobas. É fácil duvidar da existência da lareira, o foda é duvidar da legitimidade da própria existência.
E se euzinho, Chaleira Pitareli, realmente não existir? Nos primórdios do pensamento filosófico a passagem da ignorância para o conhecimento foi comparada por Platão com a jornada de dentro de uma caverna escura para a luz brilhante do sol. Os homens, assim como os habitantes da caverna, nos diz Platão, são incapazes de perceber a realidade. Só com muito esforço as ilusões podem ser vencidas, fazendo a passagem do mundo de sombras para a luz brilhante do sol da Verdade, onde, finalmente, as coisas podem ser vistas como realmente são. Como todas as historinhas inventadas, essa também tem a sua moralzinha. Sua moral é ou que a verdade é superior à ilusão, e que por isso deve ser desejada por si mesmo, ou que fazer rapel em cavernas é uma prática deveras perigosa.
De Aristóteles ao Wittinho, não foram poucos que criticaram Platão quanto à forma pela qual alcançamos a Verdade, mas foram muito poucos (Nietzsche doidão de sífilis, talvez) os que questionaram com seriedade o valor dessa busca. Eu vou me fazer entender: Será que eu quero realmente saber se eu realmente existo ou se sou apenas o alter-ego de um cara com baixa autoestima? Eu acho que os perfis fakes não podem permanecer filósofos por muito tempo, pois devem ceder ao impulso religioso, quase pascaliano, de acreditar e ter fé. Nós, fakes, preferimos o risco de estar errado e existir a estar em dúvida e poder não ser real.
Eu conheço uma pessoa que tem um rinoceronte de brinquedo chamado Homenzarrão. Ele me diz que o Homenzarrão desempenha um papel muito importante na sua vida. Ele é um personagem tão real quanto os seus familiares e amigos, e, sem dúvida alguma, muito mais simpático que eles. Ele tem sua própria rotina, suas comidas favoritas, seu jeito de dormir, seu jeito de brincar e de ficar brabo e seu jeito forte de falar e se impor. É evidente que o Homenzarrão, por inteiro, é uma criação dessa pessoa e que não tem existência fora da sua imaginação um pouco errada. Agora você deve estar se perguntando: "Se isso acontece com o Homenzarrão, por que isso não poderia também estar acontecendo com você, senhor Pitareli?". Mas o caso é que há uma coisa que poderia arruinar por completo a relação dessa pessoa com seu rinoceronte: perguntar se a criatura existe ou não. "Meu amigo, essa coisa azulada e com chifres vive mesmo independente de você ou você a inventou?" - essa é uma pergunta que em hipótese alguma deve ser feita para a pessoa em questão.
O que me ocorreu, e é isso apenas o que eu queria dizer, é que semelhante discrição devesse ser também adotada com relação aos fakes vivos da internet. Isto é, jamais deveríamos perguntar se eles realmente existem ou são a imaginação de algum estudante com tempo de sobra. Quando eu era criança, meu avô, Tonico Pitareli, me contou a história de um homem que acreditava ser feito de sorvete de flocos. Então esse homem não saia no sol, com medo de derreter e se movia muito pouco, por medo de se derramar todo. Os médicos tentaram todo o tipo de tratamento: hipinose, drogas, sedativos, choques, filosofia clínica. Nada funcionava, em especial essa última. Finalmente um psicanalista pouco conhecido na época fez um esforço extraordinário para entrar na alma do paciente iludido e disse que a solução para o seu problema era sempre carregar consigo um bambolê roxo em volta da cintura. Assim ele poderia sentar em qualquer lugar sem se despedaçar e poderia até andar na rua num dia ensolarado. Dali por diante, contou meu avô, o homem que acreditava ser feito de sorvete de flocos nunca mais foi visto por ninguém sem um bambolê roxo em volta da cintura, mas, no entanto, levou uma vida mais ou menos próxima do normal.
Essa historinha contada por meu avô (apesar de ser mais verossímil do que aquela contada por Platão) também tem a sua moralzinha: Ela mostra que, embora a pessoa esteja vivendo sob uma ilusão (ser feito de sorvete de flocos, a própria existência, o amor, a religião, a filosofia de Kant), se ela descobre uma parte para se complementar (como um blog fake na internet ou um bambolê roxo), então tudo pode ficar quase bem. É quase como se as ilusões não fizessem mal por si mesmas, mas só na medida em que se acredita nelas sozinho ou quando não se cria um ambiente na qual elas possam ser sustentadas. Então, enquanto eu e o estudantezinho pudermos manter o bambolê roxo em volta da nossa cintura, o que importa qual é exatamente a Verdade?
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