segunda-feira, 31 de agosto de 2020

o riso dos enzos

 o que mais tem me interessado, desde que comecei a dar aula para crianças, é perceber o jeito que crianças costumam rir. vocês já repararam como uma criança ri quando algo está fora do lugar? quando uma coisa acontece de maneira inesperada? quando trocamos uma palavra? crianças morrem de rir quando alguém tropeça, ou anda de maneira esquisita, ou ainda quando alguém aparece com um chapéu extravagante, ou conversa com uma voz incomun. crianças adoram os tipos atrapalhados. uma vez, numa turma de segundo aninho, eu troquei o nome de um aluno, e isso foi suficiente para a turma morrer rindo até o final da aula. mas por que? por que criança ri de coisas que a gente não presta muita atenção? 

parece que crianças riem quando rola uma falha, um fracasso no mecanismo do mundo adulto. o riso dos enzos surge quando as coisas estão fora de ordem, estranhas, desfamiliarizadas, privados, por um momento, da função que ocupam na organização geral das coisas. crianças riem quando as coisas saem dos trilhos, quando algo aparece fora do lugar. não é por acaso que o som de uma criança rindo é tão excessivo, parecendo incontrolável, como se fosse uma hemorragia de sentido. uma de minhas alunas, durante a aula, colou uma figurinha na própria testa e mostrou, apontando com o dedo, para a coleguinha. eu nunca vi alguém rir tanto e com tanta vontade quanto essa aluna. por causa de uma figurinha da frozen colada na testa da amiga. 

para o adulto que observa, esse riso pode significar uma pausa na ordem tirânica da vida adulta. o riso infantil pode perturbar o equilíbrio de nosso universo. a gente é bom em fingir que as coisas estão seguras e bem encaixadas. as crianças só podem mesmo rir de nosso desejo idiota de acreditar que nossos significados gratuitos e valores frágeis são tão estáveis e firmes quanta a confianças daqueles trinta por cento que ainda insistem em apoiar o presidente. 

crianças são derridianos naturais. seu riso denuncia a contingência e fragilidade de nosso mundo adulto. é difícil ver uma criança rir e não pensar na incerteza e falta de fundamento da nossa existência. eles mostram, para ser heideggeriano, o elemento encoberto na aparente funcionalidade cotidiana de nossa vida. o riso das crianças mostra a precariedade e incerteza fundamentais de nosso próprio modo de ser. o que fracassa é nossa ideia de cosmos, a ideia de sentido do mundo visto como um todo virtuoso, racional e bem ordenado.

toda a nossa metafísica ocidental não sobrevive a uma gargalhada de criança.