segunda-feira, 27 de janeiro de 2020

eu só acredito
no contorno da vida
só na vida
e no bater do coração

sei que é verdadeiro
o ar que entra nos pulmões
e o sangue quente
que impulsiona 

eu só coloco fé no espanto da gata dasein
quando me olha

o resto
é tudo especulação

sexta-feira, 3 de janeiro de 2020

sobre o verão de poa

em porto alegre, o vento ainda não se decidiu se é de chuva ou de friagem. mas o cinza introduz possibilidades no verão portoalegrense, aquele que contrária os meteorologistas. e, como a filosofia raramente sobrevive ao calor de mais de trinta graus, aumentam as chances do indizível acabar em silêncio. até ontem era dia de ocupar as praias e os clubes, essa gente toda, nós mesmo, tagarelando feito doidos. 

se ao menos não tivesse esse mormaço, esse vento seco e esse céu de um um cinza tão escuro, talvez as palavras servissem como embalagem para coisas mais alegres e sólidas, coisas bonitas que impusessem sua existência inevitável. mas o princípio do verão de porto alegre é uma tristeza muda, como se deus, descalço, caminhasse pelas folhas. 

Enquanto isso a vida vai passando. dois mil e vinte. um dias as pessoas vão embora. quem fica, fala pouco sobre esse assunto, que, por incômodo, não se demora. no entanto, conversam sobre como o verão deste ano promete ser mais quente do que o anterior. isso significa que há diferenças entre viver agora e em outro tempo, o que deve implicar em algum tipo de responsabilidade. e não se trata de uma decisão pessoal. há um vento, uma vocação, um chamado cuja origem não sabemos identificar, mas que nos dá confiança para navegar nessa incerteza. porém, por mais que queiramos ser impessoais, a responsabilidade é sempre nossa. o que quer que seja, não está lá fora. é dentro da gente. 

o inventário do tédio registra: vizinha varrendo o quintal, cachorros correndo e latindo, crianças brincando, o ônibus que passa, o martelo de alguém que conserta um móvel. alguma música acidental num apartamento distante. mais coisas, talvez. se ao mesmo a gente tivesse tempo para ouvir. ver, ouvir e calar. é o que resta. como o tigre de benjamin, reunir toda a força ao redor de um único ponto do solo antes de saltar. nesse momento, tudo é. 

respirar fica difícil e penoso. atrapalha até o pensamento. o tempo mofa, por debaixo das folhas. nesse tempo abafado, só o esquecimento permanece. tudo cheira a dia tristes. a beleza, se existe, fica encoberta. numa tarde nublada do verão de porto alegre. o tempo dará o tom e a melodia, pois o tempo muda e desmuda tudo. o esforço para pensá-lo é que parece ser muito grande - pela filosofia ou pelo tédio - tanto no frio quanto no calor.