Nunca ninguém aceitou a tristeza que lhe foi reservada. Nunca ninguém suportou o baque com o inevitável sem planejar uma fuga imediata. Ninguém nunca ficou parado sem reação numa dor esperando ela dar o seu último espasmo. Ninguém nunca fez nada disso. Ninguém além de mim.
A vida inteira meus amigos me censuraram, diziam que eu me apagava demais aquilo que todo mundo evitava. Você precisa reagir!, diziam, Você só pode gostar de sofrer!, diziam também. E no final das contas, nos machucamos tanto e enfrentamos tantos perigos que merecemos sim o riso forçado no rosto, a cabeça aberta com álcool, o corpo transbordado no sexo, a autoconfiança fake no pó. Acontece que nunca me convenceram do tudo bem obrigatório, nem os propagandistas da alegra desesperada e nem as indústrias da felicidade. Muito menos as séries de televisão melosas usadas para disfarçar em nossos corpos as marcas da melancolia. A verdade não pode ser disfarçada e nem embelezada. A verdade não pode ser rejuvenescida. Se você disfarça ou foge da verdade, ela se afasta um pouco mas logo volta sob o nome de Inevitável. A verdade tem mais é que ser assumida, como uma marca de nascença -- mas não como uma marquinha charmosa que que trazemos na pele desde o útero, e sim como uma cicatriz formada lentamente na nossa própria experiência de estar jogado no mundo. Como se tivéssemos que nascer todos os dias, sabendo que isso dói. Uma cicatriz que perdeu o seu sentido, mas que continua ali, marcando, marcando apenas uma ausência.
E quem é que pode nesse mundo se considerar o senhor do tempo para medir o prazo certo das sensações e da cura? Quem tem a autoridade para dizer quando já basta de lucidez?
Isso não é só uma atitude de abraçar o pior. Nunca senti orgulho da dor e nem tentei disfarça-la com química. Talvez eu tenha buscado, e é apenas isso, uma dor pura, sem fertilizantes. Porém isso foi só porque queria assumir o que era meu. Se a dor é o que temos de mais nosso, não devemos perder tempo sentindo outras coisas. Uma dor sem conservantes, sem trilha sonora. Pura como um contato com Deus. Que dê o que tiver que dar. Até acho que todo mundo deveria ser um pouco assim. Pelo menos assim, pelo enfrentamento, seguiríamos em frente mais honestos, mais limpos, mais expurgados, No mínimo seríamos menos prepotentes.
Sozinho, sem disfarces, não mais impelido pelos outros a buscar nas gargalhadas um amparo a todo custo, passei a suspeitar desse mundo em que, na desilusão de uma paixão recém concluída, corre-se desesperado atrás de um novo êxtase - e depois outro, e outro, e outro, encobrindo, com isso, todos os furos de nossas camadas, maquiando todos os sinais de nossa orfandade. Até que toda amargura e toda solidão se concentrem num acontecimento inevitável, cheio d angústias e com horas contadas, mas avizinhado por tantos outros cheios de obrigações e prazeres com os quais nos distrair.
É apenas por honestidade que me recuso a repetir esse movimento mais uma vez. Porque aceitar o escuro significa saltar para a nudez da morte, esta da qual fugimos a todo custo. Aceitar o escuro é, na verdade, aceitar a pureza de nossa força vital mais inconclusa. E então diante da agonia eu nunca entendi (e foi por não entender que nunca aceitei?): sempre paralisei diante de tudo aquilo que não pude controlar. E, quando paralisava, eu era como um corpo que cai para dentro. Eu olhava ao redor: via as ruas e as pessoas, via fantasias, via conversas sendo interrompidas por gargalhadas e beijos, e parecia que só eu aceitava a queda. Só eu abria o peito para escolher. Eu era único que dizia sim ou não para a vida. E, no entanto, não me sinto melhor por isso, nunca me senti especial. Pelo contrário: foi daí que veio toda minha fragilidade e minha timidez. Vem daí todo o meu estranhamento e o meu desencaixe.
No fundo mesmo, queria era ser igual. Porque ser igual sempre me pareceu a melhor opção: os outros pareceram sempre tão mais a vontade do que eu nesse mundo. Ser igual poderia ser viver com mais facilidade, escorregar sem resignação por dentro da existência. Acontece que meu ser é pelo avesso e, constrangido pelo medo, ele prefere não se expor. Eu nunca desejei essas coisas. Nunca desejei ser rejeitado. Nunca desejei ser o espelho que reflete o que ninguém quer ver. Eu também queria um pouco de colo, um pouco de cuidado. Queria ser aceito, queria ser mais um bonitinho. Eu também queria desviar da desolação e da vertigem e buscar acolhimento. Mas confesso que havia, dentro dessa desordem a que acostumei a chamar de lar, paredes invisíveis que eu mesmo ergui sobre o terreno vulnerável aonde me coube crescer - confesso, sim, que havia ali alguma força, alguma firmeza, alguma virtude que era só minha. A isso tudo eu dei o nome de Coragem.