Por fora, sua casa nem vale a pena detalhar: se parecia com qualquer outra. Uma cerca, um pátio com jardinzinho, janelas, porta... Por fora ela não tinha mesmo nada de extraordinário. Todas as casas da praia se pareciam. Na parte de dentro, na sala, as paredes estavam cobertas de livros. Os livros ainda se amontoavam sob a mesa e nos cantos da sala. Havia livros em todas as partes. Era uma casa cheia de livros, cheia de presenças, cheia de chamadas ao desconhecido. Foi naquela sala que Dasein havia aprendido a ler, a fumar seus primeiros cigarros e a contemplar o mar pela janela. Gostava de olhar pela janela e imaginar a viagem dos barcos, gostava de pensar que eles visitavam os lugares mais escondidos do mundo. Dasein era um homem honesto e, além disto, o melhor relojoeiro da vila. Com bom cuidador do tempo, ele sabia que um dia ou outro teria que despedir-se desse mundo, mas quase sempre estava tão ocupado consertando seus relógios que não parava para pensar sobre o terrível dia em que morreria. Até certa manhã em que a campainha da porta soou de uma forma peculiar. "Deve ser ela", pensou. E como em um sonho, se levantou da cadeira com seus setenta e seis anos e foi abrir a porta. A única coisa que lamentou era, por não ter nunca se casado, não ter um filho para perpetuar seu nome e sua memória e ainda chorar por sua ausência. "Isso acaba hoje", pensou o velho Dasein, que abriu a porta resignado.
A primeira coisa que viu, depois de abrir a porta, foi o mar e alguns pescadores, pequenininhos, jogando redes ao calor do sol. No entanto, usando a mão para tapar a luz do sol, pôde perceber a silhueta da velha mulher que estava diante da porta.
-- Eu sou a Morte -- disse a senhora.
-- Eu sei, reconheci o seu jeito de tocar a campainha -- concordou o velho relojoeiro.
A Morte entrou na casa com passos lentos e cansados, e Dasein aproveitou para observá-la com atenção. Ela era muito mais velha do que ele havia pensado. Mais alta também, e tão feia que podemos assegurar que faz de tudo para não ser vista. Parecia muito cansada e aflita. Andava encurvada, como se tivesse todos os anos do mundo nas costas. Fazia lembrar uma velha camponesa apoiada em seu cajado.
-- Trabalhando muito, senhora? -- perguntou.
-- O de sempre -- respondeu observando a mesa em que o homem montava e desmontava os relógios.
-- Creio que eu já não tenha tempo para mais nada. A gente nunca sabe no meio de qual relógio a Morte vai nos pegar. Esse daí eu estava quase acabando.
A velha concordou balançando a cabeça. Lá fora, na praia, se respirava uma brisa muito agradável. "Ela é estranha", pensava Dasein, que depois compreendeu que não podia mais perder um único segundo. Correu e pegou o único casaco que possuía.
-- O que fazes? -- perguntou a Morte.
-- De noite costuma esfriar e imagino que temos um longo caminho pela frente.
-- Faça como preferir -- disse a Morte respirando fundo como que para tomar forças.
-- Pelo menos me deixe terminar esse relógio...
A Morte concordou e Dasein voltou para suas ocupações decidido a não perder mais um segundo do seu precioso tempo. No começo era difícil concentrar-se com a Morte na sala, mas com o tempo Dasein pensou que a vida com a Morte em casa não era nada diferente de sua vida comum.
Ele continuou montando e desmontando o seu último relógio. Já há algum tempo que havia descoberto que já não era mais tão habilidoso com suas ferramentas e, com frequência, cometia erros e perdia peças que o faziam desmontar e começar tudo de novo. Porque por mais que Dasein trabalhasse em seus relógios com cuidado e atenção, quase sempre chegava o momento em que alguma peça faltava. Não poucas vezes em sua vida, ele abandonou pequenos relógios de pulso e grandes relógios de parede no meio do seu trabalho. "Por que continuar a medir o tempo se para mim o tempo não existe mais?".
-- A senhora deve estar cansada. É melhor irmos.
Olharam-se pela primeira vez nos olhos. Agora a velha senhora não parecia mais perplexa e cansada.
-- Dê-me a mão. Não tenha medo. Eu te ajudarei -- disse a Morte.
-- Leve-me para onde quiser -- disse Dasein dando sua mão para a Morte.
Cruzaram a porta, saíram da casa sem se preocupar em fechar a porta. Na beira da praia, pescadores recolhiam suas redes de baixo do sol. A Morte e o Dasein nem ligaram para eles. Andavam juntos, de mãos dadas, apoiando-se um no outro em um lento caminhar. Pareciam dois namorados, tão juntos que iam. Ou dois velhos amigos que não se viam há um tempo mas que agora estavam reunidos ao fim e para sempre. Tudo atrás dos dois sumia: os relógios, a casa, os pescadores, a praia. Ficava um grande vazio. Tudo desaparecia e a Morte e o Dasein se dirigiam a um ponto longe no final do caminho. "Para onde vamos agora?"" Como é o lugar para onde vamos?" "É inútil perguntar", pensava o velho relojoeiro. E ele tinha razão. A morte permitia perguntas, mas não dava respostas. Nenhuma palavra mais ela diria.